quarta-feira, 29 de maio de 2019



29 DE MAIO DE 2019
DAVID COIMBRA

A volta da idade das trevas

É quase impossível ler Spinoza. Por Deus. Só li a Ética porque era jovem quando o fiz. Naquela época, se começava um livro, obrigava-me a terminar. Hoje, se o livro não me agradou nas primeiras, digamos, cem páginas, largo sem arrependimento e nunca mais abro.

Faria isso com Spinoza, embora sua obra seja tão importante. É que o texto é terrivelmente maçante. Spinoza apresenta sua filosofia não em prosa escorreita, mas em forma de teorema, subdividido em proposições, demonstrações, axiomas. A ideia é dar irrefutabilidade matemática ao sistema de pensamento, mas torna-se apenas aborrecido. Às vezes, simplesmente não entendia o que ele queria dizer e tinha de me auxiliar de outros autores que o interpretavam. Lia a interpretação e, fiat lux!, compreendia e me admirava. Porque, no conteúdo, a filosofia de Spinoza é bonita, exalta a harmonia do universo. Hoje, poderia ser caracterizada como holística.

Mesmo assim, em vida ele causou grande polêmica. Spinoza era parte judeu, parte português, parte espanhol, tudo junto e shallow now. Naquele tempo, século 17, os judeus eram perseguidos em quase toda a Europa. Um dos poucos países que os aceitavam era a Holanda, e para lá foram os Spinozas e muitos outros.

Os judeus, assim, sentiam-se em dívida com os tolerantes cristãos holandeses. Por isso, quando houve reclamações dos cristãos acerca das ideias de Spinoza a respeito de Deus e da Bíblia, os judeus primeiro o censuraram. Spinoza deu de ombros. Então, ofereceram-lhe dinheiro para que parasse de divulgar aquelas ideias escandalosas. Ele não aceitou. Aí, in extremis, o excomungaram.

O texto do anátema de Spinoza, escrito em português de Camões, tem a força das maldições bíblicas:

"Com a sentença dos Anjos e dos Santos, com o consentimento do Deus Bendito e de toda esta Congregação, diante destes santos Livros, nós heremizamos, expulsamos, amaldiçoamos e esconjuramos Baruch de Spinoza. Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja quando se deitar e maldito seja quando levantar, maldito seja quando sair e maldito seja quando entrar. E que Adonai apague o seu nome de sob os céus, e que Adonai o afaste, para sua desgraça, de todas as tribos de Israel, com todas as maldições do firmamento escritas no Livro da Lei, advertindo que ninguém lhe pode falar pela boca nem por escrito nem conceder-lhe nenhum favor, nem debaixo do mesmo teto estar com ele, nem a uma distância de menos de quatro côvados, nem ler papel algum escrito por ele".

É sensacionalmente dramático. Não é por acaso que os judeus se mantiveram unidos como povo, em milênios de perseguições, só por causa do Livro.

Expulso da comunidade judaica, Spinoza se refugiou entre amigos cristãos. E nunca publicou a sua Ética. Os amigos o fizeram, depois da sua morte.

Spinoza tinha medo. E devia, mesmo, temer. Um intelectual holandês que era seu contemporâneo, Adriaan Koerbagh, partilhava de suas ideias de que Deus é a natureza e a natureza é Deus. E pagou caro por isso. Adriaan foi processado e seus acusadores pediram a amputação de seu polegar direito, a perfuração de sua língua com um espeto de ferro em brasa, o confisco de todos os seus bens e 30 anos de prisão. O tribunal foi bondoso e só o condenou a pagar uma multa e 10 anos de reclusão. Adriaan morreu na cadeia, amassado pelos trabalhos a que foi forçado.

Tempos de trevas, em que as pessoas eram perseguidas porque pensavam. Quem diria que, quatro séculos depois, viveríamos em uma época de anti-intelectualismo, de exaltação do preconceito, de culto à ignorância? Quem diria que, no terceiro milênio, as pessoas prefeririam as armas aos livros? O mundo gira e gira e nós voltamos sempre para o mesmo lugar.

DAVID COIMBRA

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