sábado, 18 de maio de 2019



18 DE MAIO DE 2019
JJ CAMARGO

TRANSPLANTE DE PULMÃO 30 ANOS DEPOIS

AS MEMÓRIAS DAQUELE 16 DE MAIO DE 1989 NA SANTA CASA DE PORTO ALEGRE
Durante um congresso americano, em 1986, quando o grupo de Toronto apresentou os primeiros resultados do transplante de pulmão, decidi que íamos transplantar na Santa Casa, contaminados que estávamos pela ideia que germinara lá no final dos anos 1970 quando fizemos um trabalho experimental no laboratório do Instituto de Cardiologia e, depois disso, seguimos com treinamento na Clínica Mayo, nos EUA. 

Nos três anos que se seguiram, participamos de todos os seminários organizados pelo grupo canadense, e em paralelo iniciamos a preparação do Pavilhão Pereira Filho para receber o desafio. O ponto de partida foi a criação de uma UTI, com plantões regulares de intensivistas treinados (até janeiro de 1989, quando foi inaugurada a unidade, os pacientes mais graves e em pós-operatório eram atendidos por médicos residentes).

Antes que ficássemos prontos, já havia um paciente listado: em novembro de 1988, o Vilamir, um jovem de 27 anos, procedente de Vargeão do Oeste (SC), foi admitido no hospital, de onde nunca mais sairia a menos que pudessem ser trocados os seus pulmões destruídos.

A presença, sofrida mas esperançosa, do Vilamir representou um importante acréscimo de responsabilidade e angústia ao grupo, que passou a conviver com um paciente cuja vida dependia do quanto pudéssemos ser ousados e competentes. Alguém na lista significava a expectativa por um doador, uma figura, naquela altura, tão aguardada quanto temida.

Em 15 de maio de 1989, fomos informados da existência de um paciente de Novo Hamburgo, traumatizado de crânio, transferido do Pronto-Socorro para o Hospital São Francisco, na Santa Casa, e agora com o diagnóstico confirmado de morte encefálica. O tipo sanguíneo, o tamanho do tórax e a função pulmonar, perfeita, eram adequados para o transplante do Vilamir. Foram horas de grande expectativa enquanto eram realizados os últimos testes. Às 22h, fomos comunicados da compatibilidade e o Vilamir, alternando riso e choro, foi preparado para a cirurgia.

Pouco depois da meia-noite, fomos ao centro cirúrgico do hospital São Francisco, onde as equipes de transplante abdominal, doutores Santo Vitola, Guido Cantisani e Maria Lúcía, nos receberam com um carinho capaz de amenizar o medo de principiante. Desconfio que eles não têm noção do quanto sou grato àquela acolhida.

Retirado o pulmão esquerdo, que foi colocado numa bacia imerso em soro gelado e protegido por campos esterilizados, iniciamos o caminho de volta ao Pavilhão Pereira Filho, abraçados na carga preciosa. Na época, não existiam as passarelas atuais, de modo que, sem o acesso direto, percorremos, eu e o Dagoberto Godoy (meu amigo querido e um dos clínicos envolvidos no programa) o longo trajeto por dentro da Santa Casa até o pátio central e depois pelo corredor externo até o Pereira Filho. Era uma madrugada fria de outono, mas provavelmente o meu tremor não tinha nada a ver com a temperatura. Sempre me impressionou a lembrança de que nesse longo trajeto, sendo como éramos, dois parceiros fraternos e solidários, não tivéssemos trocado uma única palavra. Hoje a explicação é óbvia: estávamos em pânico. E certamente só a adrenalina transbordante fora capaz de antagonizar o medo que, de outra forma, nos paralisaria.

A partir da chegada ao bloco cirúrgico, uma sucessão de descobertas preciosas: a imprescindibilidade de parceiros competentes e fiéis, a importância da grande experiência cirúrgica do grupo em procedimentos de alta complexidade e, por fim, de que os momentos mais importantes de nossas vidas são inevitáveis exercícios da mais absoluta solidão. O silêncio total da equipe durante o procedimento e a espera que o próximo passo fosse anunciado era a confirmação de que a maior solidão era de quem decidia.

Quando, depois de completado o implante, o pulmão expandiu, a oxigenação normalizou, e todo o resto parecia maravilhoso, a transformação ocorreu: todos, excitados, começaram a falar ao mesmo tempo, porque, a partir daquele ponto, todo mundo sabia o que fazer. A exultação generalizada depois de concluído o procedimento, os abraços de solidariedade, a emoção incontida do Felicetti, a euforia do Burla, a alegria da Liduína fazendo a faxina do bloco ao amanhecer, tudo foi arquivado com o cuidado que merecem as experiências definitivas, que certamente colocaram o dia 16 de maio de 1989 como um marco nas conquistas da Santa Casa e uma divisória nas nossas vidas. 

Trinta anos depois, e 640 transplantes adiante, é mais fácil admitir que ver o Vilamir respirar sem ajuda de aparelhos, depois de seis horas de terminado o transplante, já justificaria termos decidido correr todos os riscos, mesmo sabendo que, acontecesse o que acontecesse, nunca mais seríamos os mesmos. E que nem teríamos a chance de sugerir o endereço da mudança.

JJ CAMARGO

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