segunda-feira, 27 de maio de 2019


27 DE MAIO DE 2019
CLÁUDIA LAITANO

Terraplanistas



O mundo dá voltas. Será? Cá estou, em 2019, quase 500 anos depois da primeira circum-navegação, escrevendo sobre pessoas que acreditam que a Terra tem o formato de uma pizza gigante (mezzo água, mezzo terra firme), cercada de gelo por todos os lados.

Se você algum dia nutriu a curiosidade mórbida de entender como e por que alguém se deixa levar por ideias mirabolantes e teorias conspiratórias, o documentário A Terra é Plana, disponível no catálogo da Netflix, é o filme para você. Descartado o lado bizarro do terraplanismo, porém, o documentário funciona como uma bem-vinda reflexão sobre o anti-intelectualismo da nossa época. 

Com depoimentos de terraplanistas e também de cientistas embasbacados com a força do movimento, o filme mostra como nasce e cresce um grupo formado em torno de uma realidade de "fatos alternativos" que rejeita as evidências mais elementares quando elas contrariam suas convicções. A tribo dos terraplanistas, atualmente se espalhando pelos quatro cantos gelados do planeta-pizza, prova que qualquer ideia, por mais tola que pareça, é capaz de agregar adeptos e reivindicar legitimidade. Bastam um maluco e um computador.

Se os terraplanistas são aparentemente inofensivos, as fake news e o movimento que combate as vacinas, ambos movidos pelo mesmo tipo de pensamento mágico conspiratório, já estão afetando nossas vidas. A Organização Mundial da Saúde incluiu o movimento antivacinação entre os 10 maiores riscos à saúde global em 2019, em uma lista que inclui o ebola e o HIV. Já as fake news ajudaram a eleger presidentes que desprezam o conhecimento acadêmico (a não ser claro, se for para dar uma maquiada rápida no currículo...) e estão convencidos de que o aquecimento global é coisa de comunista.

Mas como chegamos a esse ponto de retrocesso intelectual? Lançado nos Estados Unidos no começo deste ano, o livro Nervous States: Democracy and the Decline of Reason, do cientista político e economista William Davies, relaciona o avanço das teorias conspiratórias e das fake news com a crise de confiança nos especialistas e no pensamento racional - combinada a um excesso de valorização das emoções e do imediatismo. Durante o século 18, lembra o autor, surgiram ideias e instituições que tinham como objetivo exatamente regular os sentimentos, considerados falíveis e inconfiáveis. As noções contemporâneas de verdade, ciência e progresso são legados dessa época em que se buscava não apenas construir conhecimento confiável, mas também apaziguar os conflitos.

Hoje em dia, desconfiamos de tudo e de todos: política, religiões, imprensa, corporações, ciência... E quando fica difícil distinguir o que é bom do que é ruim, o que é falso do que é verdadeiro, o que é fato do que é propaganda, surgem as paranoias, as teorias conspiratórias, as fake news e a intolerância com o contraditório.

No final das contas, um bando de abilolados defendendo que a Terra é plana deve ser o menor dos nossos problemas.

CLÁUDIA LAITANO

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