terça-feira, 7 de maio de 2019


07 DE MAIO DE 2019
CARPINEJAR


Meus sentimentos

Perder os pais é difícil. É nascer de novo, adulto, agora sozinho. É um misto de desamparo e solidão. Antes existia solidão, mas não desamparo.

Mais difícil ainda é a morte dos pais quando se é filho único. Não há nem um irmão para dividir a raiva. Não há nem um irmão para apagar o sol, acender as velas e agradecer a chegada das coroas de flores. Não há nem um irmão para segurar a barra do caixão enquanto se soluça. Não há nem um irmão para dar atenção aos amigos e parentes e receber as condolências. Não há nem um irmão para se revezar na vigília. Não há nem um irmão para desamassar o vestido e o rosto. Não há nem um irmão para apertar o nó da gravata e afrouxar o nó da garganta.

 Não há nem um irmão para se abraçar, encostar a orelha e diminuir o peso dos ombros. Não há nem um irmão para ajudar a resgatar exatamente como era aquele colo e aquela voz. Não há nem um irmão para completar o quebra-cabeça, organizar o álbum de fotos dos pensamentos. Não há nem um irmão para reavivar as cenas remotas da infância e reconstituir o passado. 

Não há nem um irmão para fazer uma piada e desacelerar o medo. Não há nem um irmão para pedir carona. Não há nem um irmão para falar com o padre. Não há nem um irmão para ocupar as horas, suportar o escuro do quarto, o silêncio dos corredores vazios, o coração batendo em vão como uma porta sendo esmurrada sem ninguém mais em casa. Não há nem um irmão para segurar o lençol do outro lado para cobrir os móveis. Não há nem um irmão para apertar a mão no pai-nosso. 

Não há nem um irmão para não ter que ser o filho predileto, não ter que ser o responsável, não ter que ser quem cuida de tudo ao final de tudo. Não há nem um irmão para lembrar que é necessário comer algo, beber algo, seguir a vida de qualquer jeito.

Entendo o sofrimento do filho único. É nem saber por onde começar a se despedir. É olhar fixamente para o dia parado no calendário, e permanecer ali, sentado na data, até a lágrima aprender a descer. Uma lágrima tão grossa, tão grossa, que parece que sangra e leva os olhos junto.

Mas, diante da morte dos pais, não há privilégio nenhum: todo filho, mesmo com irmãos, é filho único na dor.

CARPINEJAR

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