sábado, 4 de maio de 2019



04 DE MAIO DE 2019
LYA LUFT

Não gostar de poesia

Alguém joga xadrez com minha vida, alguém me borda do avesso, alguém maneja os cordéis. Mordo devagar o fruto da minha inquietação. Alguém me inventa e desinventa como quer: talvez seja esta a minha condição. Bastaria um momento de silêncio para eu ser feliz: mas do fundo do palco uma voz me chama. Serás tu, amor, ou é a Morte, apenas, que reclama?

Nada entendo de signos: se digo flor é flor, se digo água é água. (Mas pode ser disfarce de um segredo.) Se não podem sentir, não torçam a árvore-de-coral do meu silêncio: deixem que eu represente meu papel. Não me queiram prender como a um inseto no alfinete da interpretação: se não me podem amar, me esqueçam.

Sou uma mulher sozinha num palco, e já me pesa demais todo esse ofício. Basta que a torturada vida das palavras deite seu fogo ou mel na folha inerte, num texto qualquer com o meu nome embaixo.

Quando me mataram, meu lado não verteu água nem sangue: eu me verti de mim por essa fenda, escorri para a terra, debaixo do gelo, ausente. (Alguém sabia: ela está ali, e isso era a tua voz na noite.)

Se houver um tempo de retorno, eu volto. Subirei empurrando a alma com meu sangue, por labirintos e paradoxos, até inundar novamente o coração. (Terei o mesmo ardor de antigamente?)

E se me quiserem amar, terá de ser agora: depois, estarei cansada. Minha vida foi feita de parceria com a morte: pertenço um pouco a cada uma, para mim sobrou quase nada. Ponho a máscara do dia, um rosto cômodo e fixo: assim garanto a minha sobrevida.

(Se me quiserem amar, terá de ser hoje: amanhã, estarei mudada.)

Abro a gaveta e salta uma palavra: dança sedutora sobre o meu cansaço, veste-se de indefinições, retorce-se no labirinto das ambiguidades.

Tento uma geometria que a contenha no espaço entre dois silêncios quaisquer. Mas ela inventa o que faço: peso de fruta no sono da semente, assiste à minha luta, belo enigma. Eu, mediação incompetente.

Estes são os meus objetos. Este é o meu rosto: uns olhos que, de procurar demais, olham só para dentro. E se tudo desemboca na morte, esse é o meu destino. É para lá que vou, esperança e protesto, segurando o candelabro dos amores que me iluminaram na vida. (Resistirão, singularmente, ao meu último sopro?)

Com as perdas só há um jeito: perdê-las. Com os ganhos, o proveito é saborear cada um como uma fruta boa da estação. Mais nada. A vida corre à frente dos relógios. O ritmo das águas indica o roteiro e me oferece um papel: abrir o coração como uma vela ao vento, ou pagar até o fim as contas já vencidas.

(Esta é uma brincadeira com quem diz não gostar de poesia, não entender poesia: são antigos poemas meus postos em prosa.)

LYA LUFT

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