14 DE MAIO DE 2019
DAVID COIMBRA
Deus, afinal, existe?
Talvez você seja porteiro, você que ora me lê. É uma possibilidade, uma vez que os porteiros, devido à porção de horas vagas próprias de sua atividade, passam algum tempo do dia lendo jornal e ouvindo rádio. Então, se você é porteiro, e se não for também, vou lhe dar uma informação que pode ser útil: existe um santo protetor dos porteiros. E, não, não é São Pedro, que, representado com seu grande molho de chaves, é chamado de "o porteiro do céu".
Não é ele.
O padroeiro dos porteiros chama-se Santo Afonso Rodrigues, um espanhol do século 16 cujo maior mérito foi ter passado 46 anos de sua vida como porteiro de um colégio.
A hagiografia, que é a história dos santos, está repleta de casos edificantes como esse. Gosto da hagiografia. Lá você encontra de um tudo, porque há muitos, muitos santos na Igreja Católica, mais de 10 mil. Imagine que cada um tem o seu superpoder: assim como o Homem-Aranha, que expele teias grudentas, e o Thor, que lança longe o seu pesado martelo Mjolnir, um santo vigia os motoristas, outro cuida das criancinhas e há até os que encontram objetos perdidos, função bastante útil.
Outra questão que me intriga: quantas Nossas Senhoras existem? Algum bispo esclarecido poderá me dirimir essa dúvida? Porque Nossa Senhora deveria ser uma só, mãe de Jesus, e no entanto as Nossas Senhoras se manifestam aos seres humanos com faculdades diferentes e até sob formas diferentes, havendo inclusive Nossas Senhoras negras. O Brasil, por exemplo, está sob proteção de Nossa Senhora Aparecida, e os zagueiros Kannemann, Geromel, Moledo e Cuesta podem apelar para a intervenção de Nossa Senhora da Defesa.
Como pode isso, tanto santo, tanta Nossa Senhora?
Pode.
Porque foi assim que a Igreja Católica satisfez a ânsia politeísta de seus fiéis.
De certa maneira, é uma distorção, porque o cristianismo teria de ser rigidamente monoteísta, como o eram os hebreus. Se bem que eles nem sempre o foram. Há inúmeras passagens do Velho Testamento que mostram como os hebreus lidavam com outras divindades. O próprio Jeová admitia isso, autodefinindo-se, com sua voz trovejante: "Eu sou um deus ciumento!".
Freud tem uma tese acerca do monoteísmo: essa não teria sido uma invenção dos hebreus, e sim dos egípcios. Mais precisamente, de um egípcio, Akenaton, faraó que desposou a lindíssima Nefertiti, a rainha do Nilo.
Freud suspeitava de que Moisés era egípcio e que serviu como sacerdote do deus venerado por Akenaton, Aton, o deus Sol. Depois da morte de Akenaton, e a consequente deposição de seu deus Aton, Moisés arrastou os hebreus para o deserto, junto com a crença monoteísta. Lá, ao pé do Monte Sinai, promoveu uma revolução ao apresentar para o povo os 10 mandamentos. O judaísmo, assim, tornou-se uma religião moral - para ganhar as benesses de Jeová, o crente deveria ter bom comportamento, não bastava mais apenas fazer oferendas, sacrifícios e bajulações.
Esse pode ser outro indício de que Moisés colheu inspiração dos egípcios ao formular sua religião. Porque, ao contrário das outras religiões antigas, a dos egípcios também era moral, tanto que o morto, ao se submeter ao julgamento de Osíris, colocava seu coração no prato de uma balança. No outro prato era deitada uma pena. Se o coração pesasse mais do que a pena, o falecido era devorado por um monstro terrível, que tinha o corpo formado por partes das três feras temidas pelos egípcios: o bicho era 33,3333% crocodilo, 33,3333% hipopótamo e 33,3333% leão, um horror.
Acho que estou indo muito rápido. Quero responder se Deus existe, mas ainda não consegui expor meu raciocínio. O que quero dizer, falando de tantos deuses, é que cada cultura e cada tempo tem o seu. Ou os seus. Só na Igreja Católica, como disse, mais de 10 mil. E outros milheiros entre gregos e troianos e romanos e egípcios e árabes e chineses e japoneses. Tupã, Zeus, Rá, Jeová, Alá ou o Inominável? Qual é "O" Deus? Se há tamanho número de crenças, como alguém pode afirmar que a sua é a verdadeira? E o principal: a razão, fria e impessoal, pode responder se Deus existe?
Pode. Afirmo que pode.
Mas não agora. Não hoje. Seguirei em frente, creia, incréu leitor.
DAVID COIMBRA
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