sábado, 3 de outubro de 2015



04 de outubro de 2015 | N° 18314 
ROBERTO ROMANO

Servidão voluntária



É fácil notar indivíduos inteligentes e cultos que apoiam governos tirânicos e religiões genocidas. Ao dobrar a cerviz eles se reduzem a instrumentos descartáveis. A solidariedade perversa em política gera o que Merleau-Ponty intitula “a comunhão negra dos santos” (Nota sobre Maquiavel). Os piores malefícios ocorrem se ordenados por hierarcas cuja ideologia a tudo e a todos justifica. Salvo os inimigos.

Mesmo quando vítimas da máquina partidária, militantes ideologizados guardam fidelidade canina. É o caso do Partido Comunista e dirigentes perseguidos por Stalin. A técnica predileta, nos tribunais farsantes de 1936, era colocar o réu em frágil situação psicológica. Sabedores da sua inocência, os promotores lhes perguntavam: “O Partido diz que você é culpado. 

Sua língua nega a verdade do seu partido?”. Ir contra o “seu” partido seria destruir a própria vida, os valores defendidos no pretérito. Mas aqueles princípios eram arruinados pela polícia, promotores e juízes a soldo do “paizinho dos povos”. Situação surreal: garantir a própria inocência seria provar que o governo dos antigos camaradas era escabrosa farsa. Eles aceitaram a culpa farsesca em nome de um passado abolido.

E falo de pessoas eruditas, como Bukharin, Kamenev, Zinoviev e outros.

Em tempos obscurantistas da Igreja Católica, a censura e o castigo tinham um nome: sacrificium intellectus. Segundo Inácio de Loyola tal seria “o terceiro e mais elevado grau de obediência”. Trata-se de ardil para tanger o ser livre ao rebanho. A desculpa da técnica encontra-se na suposta frase de Tertuliano, “credo quia absurdum”, creio porque é absurdo. Como numerosas falas inverídicas, tal enunciado só com muita ardilosidade pode ser lido em Tertuliano. 

Ele faz companhia ao “Paris vale uma missa” jamais dito por Henrique IV; “se eles não têm pão, comam brioches”, de Maria Antonieta; “que grande artista vai perder o mundo” atribuído a Nero. Max Weber generaliza o silêncio obsequioso para toda religião. A depender de suas circunstâncias, elas sempre exigem do fiel… a fidelidade contra o intelecto.

Sempre que num coletivo impera o credo quia absurdum, e as falas são administradas por líderes – não por acaso, Stalin se interessou por linguística – religiosos ou civis, grassa um ódio ao pensamento crítico que aterroriza quem ousa raciocinar, pedir provas factuais ou lógicas das autoridades. É a misologia, termo inventado por Platão.

Quais origens possui o manso, obediente silêncio obsequioso mantido pelos tesoureiros petistas condenados pela justiça? Nos casos Delúbio e Vaccari, a comunhão negra dos santos funciona a pleno vapor. E nela reside a ideologia segundo a qual, para usar a tese de Trotsky: “o partido sempre tem razão (…) só podemos estar certos com e pelo Partido (…) e se o Partido adota uma decisão que um ou outro julga injusta, ele deve dizer, justo ou injusto é o meu partido e eu apoio as consequências daquela decisão até o fim”(26/5/1924). Até o fim, as piores coisas resultaram e ainda virão de tamanho servilismo voluntário.

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