sábado, 3 de outubro de 2015


03 de outubro de 2015 | N° 18313 
CLÁUDIA LAITANO

Matutar


Todas as noites, antes de dormir e quase até pegar no sono, eu pensava nos meus problemas. Eram três, disso eu tenho certeza, e um deles envolvia uma encomenda feita sem autorização dos adultos a um vendedor ambulante que passava de tempos em tempos na frente da nossa casa – dos outros eu esqueci. Quando minha mãe me botava na cama e apagava a luz, eu acendia meus três problemas para jogar com eles no escuro. Ainda não tinha aprendido a ler, mas já sabia me preocupar.

Apesar de a palavra “problema” ter entrado tão cedo no meu vocabulário, não tive uma infância “problemática” – os maiores problemas de uma criança, em geral, não são esses que ela consegue partir em pequenos pedaços e observar. 

Que eu tenha captado o sentido da palavra ouvindo a conversa dos adultos (ou vendo novela) e tenha me apressado a colocá-la em uso todas as noites apenas demonstra certa predisposição precoce para o lado não prático da existência – e hoje me parece fabuloso que uma das minhas memórias mais nítidas da infância diga respeito não a algo que me aconteceu ou que eu vi, mas a uma atividade puramente mental: matutar.

Com o passar dos anos, meus problemas ganharam em concretude e variedade. Os menos graves foram parar na maçaroca indistinta das aflições superadas, lá onde uma não desprezível montanha de preocupações antigas causadas por atritos na família, amores frustrados ou dissabores no trabalho já perderam boa parte do poder que um dia tiveram sobre mim – tenham sido solucionados, esquecidos ou voluntariamente descartados. Quase tenho carinho por eles.

Porque ter um problema é ruim, claro, mas não como um acontecimento trágico ou um fato consumado diante do qual só nos resta sofrer com maior ou menor resignação. Problema é aquilo que a gente fica remoendo não apenas porque nos incomoda, mas porque imaginamos que existe uma solução, em algum lugar, esperando por nós. Como um enigma que nos parece absolutamente banal – mas apenas depois que conseguimos decifrá-lo. Problema resolvido produz conhecimento.

Não devemos subestimar nossa capacidade para resolver impasses, conflitos, crises de pequenas ou grandes proporções. Quando não contempla a possibilidade de solução, não estamos diante de um problema, mas de uma sentença. Costumamos associar a expressão “esquentar a cabeça” com reações impulsivas e violentas, mas, às vezes, o que mais nos esgota mentalmente é o oposto disso: o esforço para buscar não a solução mais rápida, mas a melhor. Matutar.

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