segunda-feira, 12 de novembro de 2007



12 de novembro de 2007
N° 15416 - Luis Fernando Verissimo


Tomando liberdades

Na correspondência dos jesuítas eram freqüentes as referências à dificuldade que certos padres tinham com a gramática no seu trabalho de catequese, nas Missões.

Freqüentes e obscuras: não se sabia se a dificuldade tão citada era com a gramática que os próprios padres ensinavam ou com a gramática dos nativos. Até descobrirem que "gramática" era um código, para castidade. O problema de alguns padres era manter seus votos de abstinência em meio aos índios. Ou, no caso, às índias.

Conscientemente ou não, o código foi bem escolhido. Pecar contra a gramática é um pouco pecar contra a castidade, se se aceitar que a correção gramatical é uma norma de boa conduta e as regras da língua equivalem a parâmetros morais.

Fala-se na "pureza" do vernáculo e na sua poluição, ou violentação, vinda de fora e de um jeito ou de outro todo o vocabulário da perdição da língua (seu abastardamento, sua vulgarização, sua entrega a estrangeirismos como prostitutas do cais) tem conotações sexuais.

Tomar liberdades com a língua é uma atividade tão mal vista pelos guardiões da sua virtude como seria tomar liberdades com suas filhas. Que o povo peque contra a linguagem é aceitável, para a moral gramatical, já que ele vive na promiscuidade mesmo.

Mas pessoas educadas, que conhecem as regras, dedicarem-se a neologismos exibicionistas, à introdução de pronomes em lugares impróprios e ao uso de academicismos para fins antinaturais é visto como devassidão imperdoável. De escritores profissionais, principalmente, se espera que mantenham-se corretos e castos a qualquer custo.

Mas vivemos com relação à gramática como viviam os jesuítas com relação à "gramática", esforçando-nos para cumprir nossa missão - que não deixa de ser uma catequese, mesmo que só se dê o exemplo de como botar uma palavra depois da outra e viver disso com alguma dignidade - sem sucumbir às tentações à nossa volta.

Também não conseguimos. O ambiente nos domina, a libertinagem nos chama, e pecamos o tempo todo.

DIÁLOGO

- Você acha que esta experiência, de morar juntos, vai dar certo?

- Arrã. - Como se fôssemos casados? - Arrã.

- Nós não vamos começar a nos desentender? - Ahn-ahn. - "Ahn-ahn" é "sim"?

- "Ahn-ahn" é "não". "Sim" é "arrã". - Você não acha que... - Ahn...

- O que quer dizer "ahn"? - "Ahn" quer dizer que eu estou aqui. Quer dizer que estou ouvindo. Quer dizer "Continue". - Isso é língua de casado? - Arrã.

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