Gaúchas com a palavra
O ano de 2021 foi o pior da minha vida. Naquele fevereiro a covid derrubou-me de uma forma que levei o ano inteiro para me recuperar. Enquanto convalescia, estreitei os laços com a minha gata Cora. Forçado a ficar em casa, passava horas decifrando a linguagem felina. Quando estava prestes a falar gatês, a mesma doença que quase me levou a levou. Decididamente, um ano para esquecer.
Fora o carinho e amparo dos amigos e familiares, minha memória daquele ano só registra uma felicidade: tive tempo para ler com calma Os Gaúchos - Cultura e identidade masculina no Pampa (Tomo Editorial, 2021), de Ondina Fachel Leal. O livro é um presente para nosso Estado, daqueles raros que já nascem clássicos. Obra que abarca todas as dimensões do seu tema.
O livro Os Gaúchos fica na prateleira dos inclassificáveis, pois é de antropologia, de história, de cultura gaúcha, de sociologia das mulheres do Pampa, da psicologia do suicídio. No estilo, Ondina alcança a façanha de escrever em linguagem simples sem deixar de ser profunda. É também uma aula de como se faz pesquisa, a autora explica os caminhos das escolhas teóricas e das alterações que o projeto pode ganhar no decorrer da experiência de campo.
Certos livros não escolhemos, tropeçamos neles. Quis entender do que tratava o recém-lançado livro A Estranha Ideia de Família (Editora Arquipélago), da Julia da Rosa Simões, e caí lá dentro. O mote é simples, Julia cresceu com dois mistérios: a amargura da avó - mãe de seu pai - e o silêncio deste pai, especialmente sobre a história de sua família de origem. A obra é o relato detetivesco da abertura do álbum de segredos de sua família.
Difícil falar do livro da Julia sem estragar a surpresa da trama, mas na essência é um exemplo de como as mulheres da fronteira eram tratadas quando descarrilhavam do papel tradicional. Serve como ilustração das teses da Ondina sobre as funestas consequências da cultura da honra na vida de todos. Como Julia é historiadora, o enredo familiar é lido dentro do contexto da época. Ela dialoga com vários autores, mas a mais importante fonte para seu livro é justamente Os Gaúchos.
No costumeiro relato das nossas glórias e no inventário das covardias, sobrou pouco espaço para a análise da dolorosa história da intimidade. A visada feminina sobre a nossa cultura tira da sombra o preço do apagamento imposto às nossas antepassadas.
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