segunda-feira, 28 de novembro de 2022



28 DE NOVEMBRO DE 2022
CÍNTIA MOSCOVICH

Bituca: um deus entre nós

No estádio do Mineirão, em plena região da Pampulha, no dia 13 de novembro passado, quando deram as sete horas da noite, primeiro vieram as batidas, sincopadas e fundas, de Tambores de Minas, instrumental que funcionou como um aviso de que o show iria começar. E logo o show começou: no palco e nos dois telões gêmeos que o ladeavam, a figura de Milton Nascimento a bordo de sua sanfona se impôs debaixo de uma iluminação feérica - calvo, miúdo, doente, a voz ainda poderosa entoando Ponta de Areia foi um milagre que varou o estádio e as 60 mil pessoas que foram se despedir.

Trajando uma túnica laranja na qual pássaros e palavras bordados voavam, uma delicadeza concebida por Ronaldo Fraga e que fazia referência direta ao Manto da Apresentação, de Arthur Bispo do Rosário, Bituca tentava controlar a voz que, sem medo ao clichê, se compararia, em anos passados, ao mais límpido cristal, mas que, no momento, se turvava, falhava, errava, equívocos nos quais pesava a emoção, a idade e a saúde precária. A figura de Milton, no entanto, se impunha como uma espécie de deus, mas um deus humilde e comovente, todo contido, ali sentadinho em sua cadeira no meio do palco, e juntos cantamos da Bahia-Minas, estrada natural - o Mineirão caiu de joelhos em reverência.

Homenageando Gal Costa, que morrera alguns dias antes, o show de despedida de Milton, que ganhou o título de A Última Sessão de Música, foi marcado, como em toda a sua carreira, pela competência extrema. Com a presença de luxo do pessoal do Clube da Esquina - Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta e Wagner Tiso -, mais Samuel Rosa e o vocalista Zé Ibarra (que dava cobertura a Milton nos momentos em que o alcance da voz não correspondia), o espetáculo foi uma reunião histórica de talentos, junção abençoada quando Milton, ao evocar Elis Regina, disse que ela havia sido o grande amor de sua vida.

Milton foi no show final o que foi a vida inteira: elegante, comedido, silencioso, olhos atentos e sorriso apenas riscado no lindo rosto de duas covinhas a que nos acostumamos em 60 anos de carreira. Escolheu o momento em que iria se retirar dos palcos e deles saiu em glória, digno, aclamado e amado - tendo que pedir várias vezes que a plateia contivesse seus ímpetos para que pudesse completar sua apresentação. No meio de uma das dezenas de ovações, nas quais o público, em êxtase de revelação, repetia seu nome, ele correspondeu: "Eu também amo vocês".

Maior, grande, superlativo. Um deus cantou entre nós.

CÍNTIA MOSCOVICH

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