quarta-feira, 27 de novembro de 2019



27 DE NOVEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

Ninguém dança com ditadores

Existe uma palavra que está meio em desuso na língua portuguesa, mas que possuía forte significado em passado recente: "carão". Os homens tinham muito medo de "levar carão", como se dizia. Se você é jovenzinho e não sabe o que é, explico: o carão se configurava quando, em uma festa, um homem convidava a mulher para dançar e ela recusava. Para alguns, era uma afronta a mulher dizer que não queria dançar com eles. Uma falta de educação.

Tenho cá para mim que o medo do carão foi um dos responsáveis pelo recrudescimento da ditadura no Brasil. É que, em 2 de setembro de 1968, o deputado Márcio Moreira Alves, o "Marcito", subiu à tribuna da Câmara e fez um discurso breve, porém contundente, no qual denunciava as arbitrariedades do governo e pedia para que a população brasileira, em reação, boicotasse os militares. Marcito queria que os pais não mandassem os filhos para os desfiles de Sete de Setembro e, principalmente, que as mulheres se engajassem na campanha, que elas se negassem a dançar com os cadetes nos bailes da Semana da Pátria. Que lhes dessem carão.

Os militares consideraram aquilo um escândalo e pediram que a Câmara cassasse o mandato de Marcito. Foi aberto um processo contra ele, que se estendeu por três meses. Em 12 de dezembro, numa sessão de bravura tão histórica quanto rara, os deputados votaram contra a cassação. Os militares se enfureceram. No dia seguinte, o general-presidente Arthur da Costa e Silva se reuniu com seu ministério e instituiu o AI-5, o ato que fechava em definitivo o regime, dando ao Executivo poderes imperiais.

Anos depois, o mais duro dos ditadores, Médici, resumiu o que significava aquele Ato Institucional numa única frase:

- Eu tenho nas mãos o AI-5 e com ele posso tudo.

Podia de tudo mesmo, e de tudo foi feito. Houve prisões clandestinas, cassações infames, assassinatos covardes e, o mais grave, tortura.

Tanto sofrimento só porque os militares tinham medo de levar carão?

Está certo: nós sabemos que o discurso de Marcito não representava ameaça alguma, que tinha muita ênfase e nenhuma consequência. Mas eles o usaram como pretexto. Os militares e seus apoiadores estavam ansiosos para tomar o poder absoluto. Queriam mandar no país como se o Brasil fosse um imenso quartel. Porém, mesmo os brucutus mais truculentos precisam apresentar justificativas para suas ações. Donde, a suposta relevância do discurso.

Agora, integrantes do governo voltaram a falar do nefando AI-5, e a justificativa são os discursos de Lula, tão falastrões e vazios quanto o de Marcito.

O primeiro a se manifestar foi um dos filhos de Bolsonaro, Eduardo, o mesmo que havia dito que para fechar o STF bastava "um soldado e um cabo". O próprio presidente desautorizou ambas as declarações do filho e o censurou de público. Mesmo assim, segunda-feira, o mais importante dos ministros, Paulo Guedes, citou de novo a excrescência do AI-5 como uma possibilidade, se houvesse no Brasil revoltas como a do Chile, como Lula sugere que possa haver. Em seguida, Guedes se desdisse, ponderou que o AI-5 não teria aceitação no Brasil de hoje e tal. Mas ele já havia falado, e é um despropósito que o tenha feito.

De Eduardo Bolsonaro se esperaria uma declaração deste jaez - ele é um tonto. Mas Paulo Guedes, não. Paulo Guedes acabou de apresentar ao Congresso um pacote de medidas econômicas que pode mudar estruturalmente o país. Há muitas questões graves para serem analisadas, discutidas e votadas em sua proposta. Por que ele tem de se ocupar com bobagem? Por que tanta gente ligada ao governo insiste em falar em público como se estivesse em mesa de bar?

AI-5 numa hora dessas? Essa gente merece mesmo levar carão.

DAVID COIMBRA

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