sábado, 16 de novembro de 2019


16 DE NOVEMBRO DE 2019
CARPINEJAR

Toda a vida

Sempre que preciso justificar uma compra cara, busco na memória o que a minha mãe falava para calar a desconfiança de meu pai:

- Mas vai durar toda a vida. É a melhor desculpa para o consumismo, para assinalar que fez um excelente negócio, para espantar questionamentos secundários.

Não há como derrubar a alegação de que se arrebatou um aparelho eterno ou uma roupa imortal. Assim como ninguém vai ficar fiscalizando no armário ou no cabide a duração do objeto e da peça. Por mais que desfie ou estrague, as pessoas já terão esquecido a cobrança.

Justificar o valor pela longevidade é a saída para vencer a resistência e a acareação sobre os gastos excessivos no cartão de crédito. Dizer que é lindo ou que é único ou que é de um estilista famoso ou que nos serviu bem nunca acalma os ânimos de nossa família zelosa pelo orçamento doméstico.

Enfrentei um longo processo para incorporar a panaceia dessa explicação. Não desejava plagiar a minha mãe, mas não teve jeito.

Antes eu chegava em casa com um mundaréu de sacolas, despertando a inveja e o olho gordo de quem estava na frente da televisão. Era aparecer com as mãos ocupadas que filhos e esposa me rodeavam para saber se havia presentes. "Presentes para mim", retrucava, e perdia imediatamente o apoio e a linha de crédito. Argumentava que não devia ser confundido com uma criança inconsequente, que desfrutava de consciência dos meus limites, que partiu de meu salário e que merecia gastá-lo com o que eu quisesse, longe do constrangimento de prestar contas. Só recebia a fama de egoísta.

Depois, passei a guardar as aquisições em minha mochila, para não chamar atenção no momento de abrir a porta. A discrição funcionava até estrear os mimos: "Não conhecia isso, andou comprando?"

A resposta milagrosa também me salvou além do comércio, quando pedi a mão de Beatriz em casamento ao sogro.

Não aguentava mais a maratona de perguntas sobre os meus projetos, a minha atividade e as minhas reais intenções. Suava frio, emparedado num beco: como convencer um advogado que poeta tem estabilidade financeira?

Foi quando, sem controlar mesmo, soltei a pérola: - Mas vai durar toda a vida. Ele não resistiu, e acho que se conformou comigo.

CARPINEJAR

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