segunda-feira, 29 de abril de 2019


29 DE ABRIL DE 2019
CLÁUDIA LAITANO

Obscuro objeto do desejo

O celular é a nova chupeta: mesmo os pais mais disciplinados eventualmente cedem à realpolitik da satisfação imediata em troca de algumas horas de sono ou de um almoço mais tranquilo. Alguns se sentem culpados, outros nem sequer se ocupam do assunto. O fato é que, com ou sem intervenção dos pais e do Papai Noel, um dia o bico será substituído por outros objetos de desejo. Celulares e tablets, ao contrário, vão ficando cada vez mais atraentes conforme a criança vai crescendo. Quem tem um adolescente em casa sabe o que é tomar conta de um dependente físico digital - e são grandes as chances de que esse vício seja compartilhado, em alguma medida, por toda a família.

Na semana passada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu dar um cutuco nos pais exageradamente desencanados com relação aos hábitos digitais dos filhos. Segundo as novas recomendações da OMS, bebês de até um ano não devem ter qualquer tipo de acesso a telas eletrônicas. Dos dois aos quatro anos, a indicação é de no máximo uma hora por dia de TV, games ou celulares.

O bem-estar das crianças sempre depende do bom julgamento dos pais. Cabe a eles administrar a vida digital dos filhos com a mesma disposição de acertar que demonstram ao escolher sua escola ou preparar sua comida. Já os adultos não têm a quem apelar a não ser à própria força de vontade, que por sua vez não parece estar sendo suficiente para quem deseja mudar de hábitos. Desde o ano passado, os sistemas IOS e Android contam com marcadores que ajudam os usuários a visualizar o tempo que estão gastando ao celular - o que não deixa de ser uma forma de os fabricantes admitirem que o problema do uso exagerado existe e vem afetando a vida de boa parte dos consumidores. 

Também não param de chegar às livrarias diferentes abordagens sobre o tema da dependência, seja propondo um detox radical (Digital Minimalism: Choosing a Focused Life in a Noisy World, de Cal Newport), seja refletindo sobre o sentido filosófico-existencial de doar o próprio tempo a experiências digitais nem sempre satisfatórias (How to Do Nothing: Resisting the Attention Economy, de Jenny Odell).

A mesma tecnologia que facilita nossa vida em tantos aspectos opera para que seja cada vez mais difícil viver desconectado. E isso não acontece por acaso. Nossa atenção e nosso tempo diante das telas valem ouro na economia digital. Quanto mais imersos no ambiente de satisfação ilimitada do smartphone, mais dinheiro alguém está ganhando às custas dos nossos cliques - diretamente, quando adquirimos um produto, ou indiretamente, por meio da publicidade e da comercialização dos nossos dados. Não existe "like" de graça - assim como não há vida sobressalente depois que gastarmos esta daqui.

CLÁUDIA LAITANO

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