terça-feira, 3 de agosto de 2010



03 de agosto de 2010
| N° 16416 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


O país do papel

Precisei de uns documentos para ajudar meu filho em uma transação simples e mergulhei em cheio na sopa de letrinhas em que há cinco séculos nos afogamos nesta pátria amada, idolatrada, salve, salve. Não só a lista de certidões dos mais variados gêneros era interminável, como o rol de atestados e declarações era infinito.

Minha primeira reação foi a de que estavam me exigindo a prova e a contraprova de que sou uma pessoa honesta. Mas não era apenas isso. A primeira exigência era deixar claro que eu existo, ou não me pediriam a carteira de identidade, e que me dou bem com o Leão, ou não me requeriam meu CPF e minha declaração de renda.

Afora isso, havia todo um naipe de requisitos – tanto que cheguei a me admirar de que não me reclamassem a carteira de vacina contra a febre amarela ou a certidão da primeira comunhão.

De onde vem todo esse amor pelo papel? Minha primeira inclinação é de supor que se trata de uma poeirenta herança de nossos colonizadores, ciosos de cada lei ou decreto, de cada portaria ou regulamento, de cada inciso ou parágrafo. Eis aí um pesadíssimo legado que se entranhou nas veias de repartições públicas e privadas do Novo Mundo.

Mas há algo além dessa inicial reflexão. Não teríamos adotado tamanho amor pela burocracia, se ela não correspondesse a uma inclinação que começou a vicejar entre nós bem antes do ano da graça de 1808. Antes da chegada do Príncipe Dom João, nós já amávamos atas, certidões e lacres.

Eis aí uma doença difícil de curar. Se quando a palavra de uma pessoa vale menos do que uma vírgula impressa, é porque estamos perdidos. Eu poderia chegar num cartório ou num tabelionato – até hoje não aprendi a diferença – e declarar que sou eu mesmo, que ganhei X no ano passado, que sou proprietário de quais e tais bens.

Mas aí começa o problema. A palavra escrita vale mil vezes mais do que a palavra simplesmente enunciada. Não adianta declarares que respiras. É preciso que comproves que vives, em letras e cifras, em documentos e escrituras, em guias e senhas.

Não deveria ser assim. A simples enunciação de uma frase, a mera declaração de um dado, deveriam servir para que acreditassem em ti. Mas este é um país que ama o papel

Uma ótima terça-feira para você. Aproveite o dia.

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