terça-feira, 31 de agosto de 2010



31 de agosto de 2010 | N° 16444
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Viagem inacabada

Esses tempos trocaram as telhas do Solar dos Câmara, aqui quase em frente de meu edifício. Foi um belo trabalho, como não fariam nem em Portugal, de onde o modelo de cobertura é importado. Pena é que, na pressa, esqueceram uma sacola de supermercado, presa entre duas peças.

Também esses tempos apararam umas ramagens da paineira que me faz companhia, do outro lado da calçada. Lástima é que não se deram conta de que, na dispensável cirurgia, um pedaço de lençol cor-de-rosa ficou prisioneiro de alguns galhos.

Resultado: não há vendaval, tormenta, tsunami que remova tanto a sacola de supermercado, quanto o lençol cor-de-rosa, dos lugares onde estão cativos. Não posso deixar de pensar que tudo isso é uma metáfora da incompletude do Brasil.

Nesta terra descoberta por Cabral, as obras não têm fim, nem quando se trata de um telhado, nem quando se cuida de uma copa de árvore.

Assisto por estes dias na televisão, e ouço no rádio, a candidatos prometendo que vão mudar a nação. Ouvi-los é uma injeção de patriotismo. Não apenas acabarão com a pobreza e a marginalização, como nos conduzirão do Terceiro ao Primeiro Mundo.

Eu por mim me contentaria com um Segundo reciclado, no qual, em toda a pátria amada, cada cidadão tivesse uma casa, uma escola para seus filhos e um atendimento digno de saúde, sem, naturalmente, a opressão de regimes despóticos.

Mas ao mesmo tempo me recordo de outros pleitos e de outros candidatos a deputado, senador, presidente, em que eles se comprometiam solenemente a nos transportar, sem escalas, ao paraíso. A viagem continua inacabada até hoje.

Claro que é um grande salto ver e ouvir homens públicos prometendo mundos e fundos nos meios eletrônicos de comunicação. Houve uma época, neste país, em que eles só podiam dizer seu nome e seu número.

A evolução é evidente. O ideal no entanto é que nada disso fosse obrigatório ou inconsequente. O ideal é que cada ponte, creche, hospital saísse do vago território das promessas para se converter em realidade completa e presente.

Olhei agora para o telhado do Solar dos Câmara. A sacola de supermercado continua firme em seu lugar. Olhei a paineira: o pedaço de lençol cor-de-rosa persiste inamovível. Liguei um programa político nacional: os compromissos assumidos seguem em toda a sua vazia plenitude.

Linda terça-feira para vc.

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