terça-feira, 3 de agosto de 2010



03 de agosto de 2010
N° 16416 -MOACYR SCLIAR


A cara (e os números) do Brasil

O censo que começou no último domingo tem, além de suas finalidades óbvias, um significado simbólico não desprezível. É a marca de um novo Brasil, um Brasil que, para usar a expressão de Cazuza, mostra sua cara, que descobre sua verdadeira identidade – expressa em números. Que nunca desempenharam um papel importante na história, na cultura e no cotidiano de nosso país.

O brasileiro comum não quantificava o tempo, não usava relógio. Coisa cara; o jeito era avaliar a passagem do tempo de forma aproximada, pela altura do sol. Sol a pino? Meio-dia, hora de almoço. Sol descambando? Hora de deixar a lavoura e voltar para o ranchinho. A impontualidade brasileira era tão tradicional quanto a pontualidade britânica.

Poucas coisas começavam na hora: a sessão de cinema (porque havia outra logo depois), programas de rádio e de TV, pela mesma razão, e os enterros, estes por causa da ansiedade. Porto Alegre era uma cidade de relógios parados. Relógios públicos, às vezes gigantescos, mostravam sempre a mesma hora. E não fazia muita diferença.

O país não era de números, o país era de palavras. Retórica era o nosso forte, e os discursos dos políticos o comprovavam. O importante era dizer frases de efeito; se corrrespondiam ou não à verdade, isso era secundário. O dito do cientista Lord Kelvin segundo o qual tudo que é verdadeiro pode ser expresso em números, aqui não valia.

Peguem os trabalhos daquele que foi considerado o expoente da ciência social no Brasil, Gilberto Freyre (homenageado na Flip deste ano): estão cheios de observações surpreendentes, de ideias ousadas – mas nada calçado em números, tudo baseado na autoridade do escritor.

Isso mudou. Basta ouvir os noticiários, basta ler os jornais. É uma sucessão de números: a hora, a temperatura, a cotação do dólar, o índice Bovespa, o crescimento do PIB, a taxa de juros, o número de assaltos. Temos até uma pletora de indicadores. Para a inflação são no mínimo oito, o IPA-DI, o IGPM, o IGP-DI, o IPC-DI, o ICV, o IPC, o INPC, o IPCA (desculpem, mas não há espaço para traduzir e explicar estas siglas).

Indicadores têm um grande mérito: simplificam consideravelmente a avaliação. Podemos discutir horas a fio se melhorou ou não a situação de saúde no país; ou podemos recorrer a uma cifra: a mortalidade infantil, a proporção de crianças que perecem antes de completar um ano de vida (está baixando, a propósito).

Exatamente porque se trata de seres frágeis, sensíveis ao entorno socioeconômico e sanitário, esse indicador funciona como um sismógrafo, detectando problemas na situação do saneamento básico, na vacinação, na assistência médica. Este e outros números estão sendo cada vez mais usados, porque o brasileiro está aprendendo a fazê-lo. Não por coincidência o Brasil se saiu muito bem em dois recentes torneios internacionais de matemática: nossos jovens conquistaram três medalhas na 51ª. Olimpíada Internacional de Matemática, e quatro medalhas na 21ª. Olimpíada de Matemática do Cone Sul.

Um próximo passo seria avaliar o discurso político por sua expressão numérica. Em vez de promessas, programas de governo, com metas quantitativas bem definidas. “Vou construir estradas”: quantos quilômetros, em quanto tempo?

“Vou aumentar as equipes de saúde”: muito bem, mas quantas serão, e que impacto espera-se na situação de saúde? Mais que isso, os candidatos deveriam ser cobrados em termos de resultados. Expressos em números, claro. O censo vai traçar um sóbrio e preciso retrato do Brasil. Mas, nesse retrato, o próprio censo é um detalhe importante. E animador.

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