09/04/2023
Fabrício Carpinejar
Os pais do assassino
É um fardo violento de culpa que recai nos ombros dos dois:
como eu criei um monstro? Como não percebi que ele era violento? É natural,
diante de uma tragédia envolvendo crianças, projetar-se na condição de pais das
vítimas. Vem à tona uma incondicional identificação com o sofrimento dos
enlutados. Qualquer um que cuida de existências miúdas partilha a sede de
justiça e passa a vociferar aos quatro ventos: se fosse com o meu filho,
cortaria o assassino em milhões de pedaços.
A empatia é imediata com a dor inominável de quem teve
subtraída a vida de sua menina ou de seu menino. Mas há papéis sombrios e
trevosos que são esquecidos no cenário do crime: os dos pais do homicida. É um
fardo violento de culpa que recai nos ombros dos dois: como eu criei um
monstro? Como não percebi que ele era violento?
Ter um filho assassinado ou ter um filho assassino é perder o
filho de qualquer jeito. Emerge o remorso por não ter se antecipado ao surto e
prevenido mortes de inocentes. Nem sempre os sinais da maldade são evidentes. O
filho pode ser timidamente inofensivo, rigorosamente obediente, e manter os
seus pesadelos no quarto, de porta fechada.
Pode ser educado com todos, mas alimentar uma alucinação por
visibilidade súbita, por se tornar manchete, arquitetando matança em segredo
por vários anos a fio. Pode engolir a seco desaforos, sem reação alguma,
aguardando dar o troco por todo o sofrimento jamais confessado num exclusivo
espetáculo de violência.
Pode alcançar excelentes notas, não ter participado de nenhum
incidente de agressão ou de mau comportamento na escola, e atuar, usando
codinome, como líder de um grupo sádico nas redes sociais. Pode ter emprego
estável, namoro firme, e mergulhar anonimamente em pesquisas sobre armas e
explosivos. A tragédia nem sempre grita,
às vezes geme baixinho no subterrâneo da mais pacata rotina, num murmúrio quase
imperceptível.
Só que o filho que realiza um massacre arrasta a família
inteira junto para o degredo, incluindo as próximas gerações. O sobrenome será
amaldiçoado dali por diante. Ainda que o pai seja um engenheiro famoso pelas
obras sociais, ainda que a mãe seja uma médica consolidada no atendimento à
comunidade, eles se tornam unicamente pai e mãe de um frio e sanguinário
assassino. Tudo o que fizeram de bom desaparece pelo atentado do filho.
A chacina em Blumenau é um trauma coletivo: o que podemos
fazer para não sentir mais medo? A chacina em Blumenau é um trauma coletivo: o
que podemos fazer para não sentir mais medo?
No livro Precisamos falar sobre o Kevin, a escritora
norte-americana Lionel Shriver retrata a angústia de uma mãe que vê seu filho
executar dezenas de colegas na escola. Ela tenta reprisar onde errou, em que
momento aquele menino amado mudou perigosamente de rota.
Vai recuperando omissões ao longo da educação. Kevin maltrata
a irmã e seria a provável causa de dois graves acidentes na infância dela – a
morte de seu pequenino animal de estimação no triturador da pia e a cegueira em
um dos olhos. Como a responsabilidade de Kevin jamais foi determinada, a mãe
acabou deixando passar. O distúrbio é como uma longa infiltração que se forma
no caráter até desabar as paredes da casa.
A principal questão filosófica que surge na obra é exatamente
esta: ela teria como evitar a sina? Dificilmente. Psicopatas são mestres na
dissimulação. “Tornei-me uma daquelas pessoas de quem eu sentia pena”, a
personagem desabafa, devido a sua impotência.
Eu não queria estar no lugar dos pais do assassino de 25 anos
que, armado de um machado, matou covardemente quatro crianças na escola
infantil Cantinho Bom Pastor, em Blumenau (SC), na última quarta-feira (5).
Diante da autoria de uma chacina dessas, o filho não morre
para os pais, é muito pior: os pais certamente desejam que o filho nunca
tivesse nascido. É um aborto retroativo. Porque ter um filho assassinado ou ter
um filho assassino é perder o filho de qualquer jeito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário