14/04/2023 - 09h00min
Martha Medeiros
Não tenho preparo
emocional para este universo que nos empurra avatares e robôs goela abaixo
Já que não posso interromper a velocidade das transformações e os caminhos sem volta das conquistas tecnológicas, só resta me preparar para a despedida
Se o assunto é inteligência artificial e metaverso, me
teletransporto para os Alpes através da saudade
Cada vez que ouço falar em ChatGPT, tenho vontade de tirar
do armário minhas botas de fazer trilhas. Só que não tenho botas de trilha.
Compro onde? Pergunto pra quem? Ouvi dizer que o Google já era.
Se o assunto é inteligência artificial e metaverso, me
teletransporto para os Alpes através da saudade. Quando estive em Montreux, em
2005, subi uma colina tão alta que, chegando lá em cima, enxerguei não só toda
Montreux, como toda a Suíça. Eu parecia a Julie Andrews rodopiando de braços
abertos, quase tocando o céu. Não, não sou do tempo da Julie Andrews, mas tenho
me sentido bem retrô.
“Saiba mais” é uma minhoca na ponta do anzol se enrabichando
para um bagre“Saiba mais” é uma minhoca na ponta do anzol se enrabichando para
um bagre
Outro dia escutei uma garota de 31 anos reclamar: “Talento
não serve para mais nada”. Doeu. Ela continuou: “Hoje, valioso é quem sabe
fisgar a atenção e transformá-la em dinheiro. Não era desse jeito que eu
sonhava trabalhar”. Se aos 31 anos, ela já se sente antiga diante da frieza dos
processos produtivos, eu faço o quê? Abri minha mochila e coloquei ali um
casaco corta-vento e um mapa de papel, pois implico com localizadores digitais.
Fugir para as montanhas. Quem vem comigo?
Envelhecer tem suas vantagens. Uma delas é não precisar se
preocupar (muito) sobre onde tudo isso vai parar. Até porque nada vai parar, o
mundo se renova a intervalos regulares. O problema é que agora ele muda a cada
10 minutos e minha labirintite tem acusado o golpe. Prefiro a vertigem das
montanhas, ao menos lá o ar é puro e a paisagem me acalma.
Talvez cruze com alguns ursos. Paciência, a vida cibernética
também tem sido selvagem. Não tenho preparo emocional para este universo que
nos empurra avatares e robôs goela abaixo, e que tenta nos convencer de que só
a automação gera progresso. Livro é obsoleto, cinema é obsoleto, jornal é
obsoleto, ter filhos é obsoleto. Quem for nostálgico e insistir em se casar,
passará a lua-de-mel onde? Na lua, por coerência semântica.
A lua deve parecer mais deslumbrante quando vista do cume
das montanhas. As noites talvez sejam frias, mas... Ah, esqueci, o frio também
está se tornando obsoleto.
Já que não posso interromper a velocidade das transformações
e os caminhos sem volta das conquistas tecnológicas, só resta me preparar para
a despedida. Sentirei falta do pensamento autônomo e crítico. Dos trabalhos
artesanais. Da rebeldia e das lutas por liberdade, igualdade, paz, amor.
Era tão moderno: pessoas com uma causa. Sensíveis.
Idealistas. Apaixonadas. A paixão foi a primeira a cair em desuso, como uma
ficha de orelhão. Sexo, nem se fala. Antes, falávamos bastante – e fazíamos.
Meu corpo segue aqui, mas minha cabeça já está acampada na
clareira de uma floresta, no alto de uma cordilheira. Que os ursos não sejam
tão predatórios quanto os novos tempos.
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