29/04/2023 - 09h00min
Martha Medeiros
Relato de um sequestrado:
"Seu maior medo não era morrer, e sim ter que ouvir aquela cafonice sem
parar"
Em alguns casos de sequestro, o
refém é preso num quarto e, para evitar que escute ruídos que identifiquem o
local do cativeiro, é submetido à música alta o tempo todo
Gilmar Fraga / Agencia RBS - Esperança também se encontra dentro de uma caixa de som
É sabido que, em alguns casos de
sequestro, o refém é preso num quarto e, para evitar que escute ruídos que
identifiquem o local do cativeiro, é submetido à música alta o tempo todo. Li o
depoimento de um sequestrado que passou por esse suplício: disse que, na
ocasião, seu maior medo não era morrer, e sim ter que ouvir aquela cafonice sem
parar – a playlist escolhida estava destroçando seus melhores sentimentos e o
conduzindo ao ódio e à loucura. Felizmente, foi salvo a tempo de recuperar a
sanidade e o bom gosto.
Logo imaginei uma tortura
auditiva às avessas: “sequestrar” os que gostam de música ruim e confiná-los
numa casa, obrigando-os a escutar o melhor da música popular brasileira. Claro
que seriam bem tratados, pois a ideia não seria fazê-los sofrer, e sim
despertar neles a sensibilidade e a elegância que existe até no bom e velho
rock´n´roll.
Começariam escutando a velha
guarda: Cartola, Clementina de Jesus, Lupicínio Rodrigues – tentariam fugir,
mas as portas estariam trancadas. Aos poucos, seriam introduzidos a Paulinho da
Viola. Na sequência, ouviriam o álbum Qualquer Coisa do Caetano, o álbum de
estreia dos Secos e Molhados e o álbum Alucinação de Belchior. Já que é
recomendável mexer o corpo, dançariam as músicas de Fruto Proibido, de Rita
Lee, e logo seriam embalados pelas Frenéticas, a fim de lembrarem que a vida
pode ser divertida sem ser vulgar.
Durante a madrugada, só canções
românticas. Dia Branco (Geraldo Azevedo). À Primeira Vista (Chico Cesar). Um
Girassol da Cor dos Seus Cabelos (Lô Borges). Só Tinha de Ser Com Você (Elis e
Tom). Azul da Cor do Mar (Tim Maia). Amor, Meu Grande Amor (Angela Rô Rô). Faz
Parte do Meu Show (Cazuza). Eu Sei que Vou Te Amar (Vinicius – ou com Adriana
Calcanhotto, Nana Caymmi, Mart´nália, João Gilberto, a escolher). Quando o
pessoal já estivesse grogue de paixão, o tiro de misericórdia: As Canções que
Você Fez Pra Mim, de Roberto Carlos, na voz de Maria Bethânia. Crueldade.
De manhã cedo, Jorge Ben Jor com
suco de laranja. E seguiria nessa toada por semanas: Gal, Chico, Gil, Milton,
Marisa Monte, Luiz Melodia, uma overdose de beleza e poesia ininterrupta pelos
alto-falantes, até que as portas fossem abertas e os reféns saíssem com os
corações e mentes restaurados. Sãos e salvos pela música brasileira de qualidade.
Mexendo em vespeiro, eu sei. Mas
esse país violento que nos aflige e que parece sem solução é o mesmo que nos
emociona e que conta a nossa história através de compositores e cantores que se
tornaram clássicos, cada um em seu gênero. São eles que nos mantém acordados
para quem realmente somos – um Brasil notável. Raptem-nos, camaleões. Esperança
também se encontra dentro de uma caixa de som.
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