10 DE DEZEMBRO DE 2022
ELIANE MARQUES
OXUMARÉ E A RIQUEZA
Mesmo servindo o rei de Ifé, Oxumaré era um babalaô que padecia da carência de riqueza. Como seu pai se sentira humilhado, ele se sentia triste e humilhado. O adivinho a quem consultou disse que, para possuir riqueza, ele deveria renunciar a algo na forma de um ritual de oferecimento de búzios em boa quantidade, uma faca de bronze e pombos no total de quatro. No momento em que fazia a oferenda, o rei convocou Oxumaré. Ele não o atendeu.
Mandou dizer que iria depois de terminado o ritual. O rei, furioso, deixou de pagar a dívida que contraíra junto a Oxumaré. Nesse meio tempo, Olocum, rainha de um reino vizinho, o chamara para acudir seu filho, enfermo. Retornado a Ifé com a riqueza recebida da rainha, como retribuição por seu trabalho, Oxumaré não foi reconhecido pelo rei, que esperava encontrá-lo pobre e sofredor. Invejoso de Olocum, o rei cobriu ainda mais Oxumaré de riquezas.
Se bem as coisas possam ter existência autônoma relativamente ao sujeito, para o sujeito o mundo das coisas existe apenas a partir de seu mundo psíquico que, em resumo, nasce das frases ou pedaços delas que nele se incorporam, inicialmente comidas e mastigadas no encontro ou no desencontro com outrem. Assim, os processos históricos e sociais de construção de hierarquias, em que se incluem o racismo multidimensional e a pobreza, integram parte do emaranhado discursivo daquilo que nos constitui.
Cada campo cuida disso de acordo com seu objeto, de modo que não se deveria esperar que a psicanálise tratasse disso como o faz a sociologia ou a economia. Portanto, além ou aquém da afirmação de que "pobreza não se resolve em terapia", conforme se lê no título de reportagem publicada na última edição da revista Marie Claire (Brasil), o itã antes transcrito mostra que o "ser pobre" também é uma construção advinda de outrem, de modo que alguma dimensão própria dessa problemática pertence à psicanálise, pelo menos à psicanálise amefricanah. O pai de Oxumaré foi lido por ele como pobre e humilhado. Para ser igual ao pai, Oxumaré deveria ser também pobre e humilhado. Contudo, em que pese o imperativo "seja igual ao pai", pesa o outro imperativo de que "igual a ele não se pode ser".
É corrente na clínica o discurso inconsciente de que temos de ser pobres - porque nossa família é pobre, porque nossos antepassados foram pobres ou porque os Negros são pobres. Para não sermos traidores de nossos irmãos (e da família), teríamos de ser pobres também. Assim, por mais que trabalhemos de sol a sol e sejamos muitíssimo qualificados e recebamos até uma boa remuneração, o dinheiro escapa de nossas mãos ou perdemos o que construímos ou não conseguimos construir sem perder. É difícil que renunciemos à nossa imagem de serviçais despossuídos de tudo, inclusive de um território. Nesse ponto, a psicanálise poderá funcionar como um babalaô que diz: para ganhar, algo se deve perder, não como a expropriação característica do colonial, mas como algo que está aí para se subverter.
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