Ano-Novo
Às vésperas de virar octogenário,
faço um balanço de vida. Todo fim de dezembro, prometo a mim mesmo ser outra
pessoa no ano que virá. Revejo os defeitos que me enxovalham a autoimagem e
dificultam minha existência. Para não transformar a coluna de hoje num rosário
de lamúrias, prezada leitora, vou me restringir aos defeitos publicáveis, não
falarei daqueles que relego às catacumbas da consciência.
Meu pai era contador, dizia
preferir o inferno depois da morte para ficar livre dos papéis. Talvez por
traço genético, sempre tive problemas com a papelada, nem a internet me
libertou dela. Quando um artigo científico ou texto literário impresso cai em
minhas mãos, por irrelevante que pareça, coloco sobre a mesa de trabalho para
ler ou reler mais tarde, mesmo sabendo que envelhecerá naquele local.
Se tivesse lido 10% dos livros
que se acotovelam nas estantes e das revistas científicas empilhadas entre
eles, seria um médico de notório saber e o homem culto que sempre desejei ser.
As prateleiras abarrotadas no escritório de casa olham para mim como um anátema
bíblico que vocifera: "Lembra-te, homem: és ignorante e da ignorância
jamais te libertarás".
Planejo, então, doar os livros
adormecidos há décadas, comprados para atender a interesses que perdi ou porque
me foram dados por pessoas queridas ou pela incapacidade de me separar deles.
Apesar dos fracassos anuais em realizar essa tarefa, juro que agora será
diferente.
Tenho mais amigos do que tempo
para conviver com eles. Todo ano prometo visitá-los, convidá-los para vir em
casa, sair para tomar cerveja. Promessas vãs, embora reiteradas toda vez que um
deles se vai, acontecimento cada vez mais frequente à medida que envelhecemos.
A mesma dificuldade tenho com as
roupas que disputam centímetro a centímetro o espaço no armário. Órfão de mãe
desde a tenra infância, aprendi a pregar botões, a fazer pequenos reparos, a
manter passadas as camisas e as calças e a engraxar os sapatos até o couro
brilhar.
Eles me retribuem com a
longevidade: tenho calças e camisas com vinte, trinta anos e até mais. Muitas
saíram de moda, são usadas quase nunca, mas permanecem ao alcance de meus olhos
para deixar claro que sou um desses privilegiados que acumulam mais do que o
necessário.
A despeito das tentativas
infrutíferas dos anos anteriores, prometo que desta vez vou doar as roupas que
passo meses sem vestir. Mas cada peça traz uma recordação: uma viagem, a pessoa
que me presenteou, um momento de vida, a qualidade da confecção, a beleza da
estampa ou outra desculpa qualquer para disfarçar o apego despropositado do
acumulador.
Tenho mais amigos do que tempo
para conviver com eles. Todo ano prometo visitá-los, convidá-los para vir em
casa, sair para tomar cerveja. Promessas vãs, embora reiteradas toda vez que um
deles se vai, acontecimento cada vez mais frequente à medida que envelhecemos,
porque a vida é um palco em que o cenário muda a toda hora e os personagens se
retiram um a um, condenando o espectador desatento à perplexidade da solidão.
Cinquenta anos de medicina me
ensinaram que o corpo é nosso bem mais precioso. Você, caríssimo leitor,
perguntará: "O idiota levou meio século para descobrir o óbvio?".
Claro que não, mas demorei mais do que devia para agir como quem adquiriu a
consciência de que a atividade física é essencial para uma vida mais plena e,
possivelmente, mais longa.
Comecei a correr maratonas quando
fiz 50 anos. No início, quis provar a mim mesmo que, se conseguisse completar
42 km, não me sentiria velho. Continuo a corrê-las com o mesmo objetivo e para
evitar as condições patológicas que afligem homens da minha idade, manter a
vitalidade para trabalhar e para as atividades que sempre tive.
A disciplina que dediquei aos
treinamentos para ter corrido cerca de 25 maratonas permitiu que eu completasse
a última delas em outubro passado, aos 79 anos. Apesar de reconhecer o
privilégio de chegar a essa idade nessas condições, quando muitos de meus
contemporâneos já se foram, enquanto outros ainda resistem, mas cheios de
limitações, não estou satisfeito.
Você, leitora, vai me achar
ridículo, absurdo, mas carrego a frustração de que o excesso de trabalho, a
indisciplina e a preguiça nunca me permitiram fazer uma prova bem preparado.
Chego ao fim destruído, com ímpetos de deitar no asfalto e chorar de exaustão. Em
2023, farei 80 anos, pretendo treinar com a regularidade exigida para cruzar a
linha de chegada ainda com disposição para continuar correndo. É, talvez eu
seja ridículo mesmo.
Drauzio Varela
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