26 DE DEZEMBRO DE 2022
CÍNTIA MOSCOVICH
O legado de Nélida
Uma das mortes que mais se lastimaram em 2022 - e as perdas do ano que termina foram medonhas - é a da escritora e imortal Nélida Piñon, ocorrida no dia 17 de dezembro, aos 85 anos.
Nélida, cujo nome é um anagrama do nome do avô materno, Daniel, lançou-se ao percurso literário em 1961 com o romance Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, numa época em que as moças não deveriam se afastar muito do tanque e da cozinha. Junto a Maria Firmina dos Reis, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e, mais recentemente, Lya Luft (cuja obra abre-alas da carreira, As Parceiras, é de 1980), Nélida inaugurou caminho para que outras mulheres se aventurassem na literatura. Em várias entrevistas e depoimentos, a autora de O Calor das Coisas conta das dificuldades em exercer um ofício considerado masculino e, bem pior, em lidar com personagens em crise com o desejo, com a religião e com os deveres impostos pelo senso médio.
Com narradores versáteis, sempre altiva e independente, empreendendo abrangentes trabalhos de pesquisa, com léxico seguríssimo e noção narrativa experiente, Nélida abriu espaço no mundo do patriarcado e investiu na própria literatura e na autonomia de seus textos. Suas obras, que contam com contos, romances e juvenis, obras que amealharam os mais importantes prêmios em língua portuguesa (sem contar, entre outros, o Príncipe de Astúrias, na Espanha, além de distinções nos Estados Unidos, México, Colômbia e Cuba), livros que foram traduzidos e publicados em todo o mundo.
Eleita imortal da Academia Brasileira de Letras em 1989, Nélida tornou-se a primeira mulher a presidir a instituição em cem anos, pioneirismo que pode ser creditado a uma literatura povoada de figuras femininas às voltas com as imposições da própria feminilidade, esbarrando em erotismo quase sempre reprimido e em relações com a religião tão voláteis quanto a expressão do desejo.
Envolvida, depois de morta, numa polêmica ociosa e moralista acerca de seu testamento, no qual assegura que suas duas cachorrinhas serão mantidas com todo o conforto por sua assessora Karla Vasconcelos graças aos quatro apartamentos de luxo na beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, Nélida não casou, não teve filhos e nem deixou herdeiros diretos. Seu legado é sua obra e o resultado de seu rechaço por tutelas e seu esforço por autonomia, que se estendeu e possibilitou o trabalho de todas as escritoras. Nélida também deixa por legado seu profundo amor por seus companheiros de quatro patas, aqueles que sempre estiveram lá.
Feliz ano-novo! Que venha a esperança.
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