sexta-feira, 2 de dezembro de 2022


02 DE DEZEMBRO DE 2022

DIÁRIOS DO PODER

O apagão da gestão Bolsonaro

Dias atrás, vi o delegado gaúcho Andrei Augusto Passos Rodrigues, chefe da segurança do presidente eleito, Lula, assistir, em uma das tantas coletivas do governo de transição, em Brasília, ao ex-governador do Maranhão Flávio Dino dizer que a Polícia Federal não tem dinheiro nem sequer para pagar as diárias dos agentes que garantirão a posse, no dia 1º de janeiro. Vivíamos o contingenciamento que obrigou a PF interromper a produção de passaportes.

A fala de Dino, cotado para o Ministério da Justiça, escancarou um cenário devastador, que abrange também a Polícia Rodoviária Federal (PRF), no qual faltam recursos para abastecimento, manutenção de viaturas, diárias e passagens.

Fossem apenas as falas das coletivas no QG da transição, poderíamos insinuar a catastrofização de um contexto pelo olhar de quem se saiu vitorioso da eleição e que pretende ver o atual governo sangrar pelas próximas horas, até a transmissão de poder, marcada para as 15h do dia 1º.

Mas o que se vê, no apagar silencioso das luzes dos quatro anos de mandato de Jair Bolsonaro, é uma admissão de paralisia da máquina pública. Conforme o Relatório de Receitas e Despesas do Ministério da Economia, as pastas da Educação e da Saúde sofreram os maiores bloqueios do orçamento no quinto bimestre.

Dos R$ 5,3 bilhões contingenciados, R$ 1,4 bi foram para a Educação - R$ 300 mi para as universidades federais, muitas delas gaúchas - e R$ 1,3 bi para a Saúde. No ano, o maior bloqueio, R$ 3,9 bi, foi para o Ministério do Desenvolvimento Social.

O argumento é a necessidade de que as despesas não ultrapassem o teto de gastos. E, assim, seguem os bloqueios: Ministério da Defesa, R$ 559 milhões; Ciência e Tecnologia, R$ 379 milhões; e Infraestrutura, R$ 349 milhões. Por trás dos números, normalmente frios, há pessoas. E usemos o exemplo do Ensino Superior para ilustrar que os R$ 344 milhões, que, felizmente, o governo resolveu desbloquear ontem servem para pagar energia elétrica, bolsas de estudo e funcionários terceirizados, que, por exemplo, fazem a limpeza de salas e banheiros.

Estive também esta semana no Palácio Planalto - e a sensação é de ocaso, de "vamos terminar logo com isso". Se, possível, acelerando os dias: o próprio Bolsonaro lamentou, recentemente, tempo longo entre o segundo turno e a posse. Ainda que tenha comparecido a seu local de trabalho poucas vezes desde a eleição, Bolsonaro não abandonou a política, ainda que se possa imaginar diante de seu silêncio.

Participou ativamente das reuniões que levaram o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, a entrar com a ação no Superior Tribunal Eleitoral (TSE) argumentando supostos problemas nas urnas eletrônicas de 2020 para trás. Também tem trabalhado para evitar, agora que Arthur Lira está de braços com Lula, a reeleição à presidência da Câmara. E, de birra, interrompeu o fluxo das verbas das emendas de relator - como um Vladimir Putin a fechar as torneiras do gás para a Europa.

PP e Republicanos abandonaram o PL em sua luta inglória e solitária contra o resultado das urnas. Pragmático e de olho no poder, Lira está com Lula. O centrão migra para Lula. O PL está sozinho. Bolsonaro está sozinho.

Principal pensador da política externa no governo Lula, ministro das Relações Exteriores (1993 e 1995 no governo Itamar Franco e entre 2003 e 2010, nas gestões do PT), Celso Amorim terá, certamente, um papel fundamental no novo mandato. O ex-chanceler é cotado para ser o assessor presidencial, invertendo uma dobradinha que Lula adotou nos dois primeiros mandatos, em que Amorim era o ministro e o gaúcho Marco Aurélio Garcia o auxiliar. Ou, mesmo, voltar a ser o titular do Itamaraty. Ele atendeu a coluna rapidamente, ontem.

Sabemos como a política externa andou nos dois mandatos de Lula, a sua visão de relações internacionais, mas o mundo mudou de lá para cá. O que é necessário readequar no futuro governo Lula?

Naquela época, as coisas eram mais ou menos claras, as abjeções de defesa do interesse do Brasil, por isso acentuei muito, por orientação do presidente Lula, a questão da política ativa e altiva, isto é, nossa capacidade de fazer agenda internacional e não nos inibirmos de mobilizar esforços nesse sentido. E também não aceitar a agenda dos outros, como era o caso da Alca, a maneira como estava sendo colocada a negociação da OMC (Organização Mundial do Comércio). 

Problemas desse tipo não desapareceram de todo, mas, hoje em dia, você tem razão, o mundo mudou consideravelmente. Não víamos, em 2002, 2003, risco de uma guerra mundial, por exemplo, ou nu­clear, ainda que limitada. Nem sequer risco de guerra no coração da Europa, embora víssemos já ações unilaterais, como já tinha ocorrido no Iraque, na Sérvia, e outras. Independentemente de julgar o mérito, eram ações condenáveis às luzes do multilateralismo. Mas agora acho que é um problema diferente: estamos com uma ameaça planetária, que é a mudança climática. 

Não é mais questão para se discutir se sim ou se não, mas o que devemos fazer. Tivemos com a pandemia, que não está totalmente dominada, a demonstração de que outros riscos existem, não sei se propriamente a sobrevivência da humanidade, mas as condições de vida e até uma certa arrogância na forma de viver e de se relacionar com a natureza. E temos a guerra no coração da Europa, no coração geopolítico do mundo, sem falar na continuidade dos problemas gerados pela desigualdade, pobreza, pela fome. 

Acho que, ao invés de ver questões pontuais que o Brasil tinha de resolver, o país hoje tem de estar envolvido de maneira mais ampla no encaminhamento do conjunto dessas questões. Não são questões para o Brasil ou do Brasil. São para o Brasil também. Mas são para o mundo, então, acho que isso nos obriga a outra visão do mundo. Claro que isso não exclui questões que já existiam, como a necessidade de integração sul-americana, a busca da multipolaridade, mas a forma de buscar é diferente. E a urgência de mudança na governança global para evitar essas questões é muito maior.

Com relação à disputa entre Estados Unidos e China, o senhor é um defensor do pragmatismo brasileiro, de não comprar briga de nenhum dos lados. É esse o caminho?

Pragmatismo não significa que você não tenha os seus valores. Mas, obviamente, não temos de entrar nessa briga. Aliás, fiquei satisfeito, depois do encontro do presidente Joe Biden com o presidente Xi Jinping no G20, que não necessariamente teremos uma Guerra Fria. Não há por que temer uma Guerra Fria. É isso que queremos, um mundo em que a cooperação prevaleça sobre o conflito. E o que pudermos fazer para contribuir, faremos.

E com relação ao Mercosul e o acordo? A ideologização parece que sempre atrapalha. O que vocês pretendem?

Não acho que seja um problema de ideologia. Qual acordo?

O acordo entre o Mercosul e a União Europeia.

Temos hoje duas questões importantes a tratar: uma é Mercosul-União Europeia, do ponto de vista de uma visão mais global, um acordo entre a América do Sul em geral, e o Mercosul em particular, e a União Europeia. É importante estrategicamente para esse mundo multipolar, mas isso não significa que esse acordo como foi firmado seja intocável. Os próprios europeus querem tocar na questão do clima. Tudo bem, desde que não seja nenhum protecionismo escondido por detrás disso. 

Por outro lado, também temos o desejo de receber investimentos, queremos desenvolvimento tecnológico. Como esse acordo foi firmado às pressas, abriu concessões, a meu ver, excessivas. Então, é preciso revisitar. Não estou dizendo que é preciso reabrir tudo, começar tudo de novo, mas tem de ser revisitado. Mas, claro, isso vai depender também de outras áreas de governo, não sei nem exatamente em que área vou estar, se vou estar. Mas essa é uma questão. 

A outra questão, que revela que não é ideológica, é a questão do Uruguai em relação ao Mercosul e a constante busca de acordos em separado. Durante o governo da Frente Ampla, sobretudo durante o governo Tabaré Vásquez, o ministro da Economia uruguaio queria porque queria fazer um acordo com os EUA. Hoje, eles têm um governo de direita e querem fazer um acordo em separado com a China. A gente tem de entender isso, não é questão ideológica necessariamente. Mas há uma insatisfação do Uruguai em relação ao Mercosul que temos de compreender e para qual temos de trabalhar.

DIÁRIOS DO PODER

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