terça-feira, 7 de janeiro de 2020



07 DE JANEIRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Tem muita coisa escrita

Concordo com o presidente da República quando ele diz que "tem muita coisa escrita" nos livros didáticos. Esse é um problema dos livros, e não apenas dos didáticos. Se Bolsonaro se aprofundar no assunto, constatará que tem muita coisa escrita em milhares de livros. Milhões, até.

Posso falar disso, porque livro é o objeto de que mais gosto. É a única coisa que compro só pelo prazer de possuí-la. Não sinto vontade de percorrer nenhuma outra loja, de manusear nenhum outro produto, mas fico feliz de "correr as livrarias", como se diz em Portugal, e, ao entrar em certas bibliotecas, chego a me emocionar.

Foi o que aconteceu quando visitei a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em Washington. É a maior do mundo, com 150 milhões de itens. Os americanos têm a pretensão de reunir na biblioteca TODOS os livros publicados no planeta. A ideia seria concentrar no mesmo espaço o conhecimento da humanidade inteira, 10 mil anos de civilização. Impossível, é claro. Mas eles se esforçam. Há até livros meus na Biblioteca do Congresso.

Estive lá numa tarde de chuva e me detive diante da caixa de vidro à prova de balas que guarda o primeiro livro impresso pelo homem: a Bíblia de Gutenberg. Ela é chamada de "incunábulo", como todas as obras confeccionadas naqueles primórdios das artes gráficas. Antes, os livros eram escritos à mão, em geral por monges que se esfalfavam em mosteiros da Europa cristã. Os monges desenhavam criteriosamente as letras e tomavam cuidado para dar harmonia a cada página. Um único exemplar, assim, levava muito tempo para ficar pronto e custava uma fortuna. Os incunábulos, impressos em tipos móveis, tentavam imitar a caligrafia dos monges, a fim de deixar o livro de acordo com o gosto da época. E, de fato, a Bíblia de Gutenberg é linda.

Olhando para ela, especulei se Gutenberg um dia chegou a imaginar a revolução que seu invento desencadearia. O mundo mudou por causa dele, uma mudança muito maior e mais profunda do que a provocada por qualquer invenção posterior ou anterior, incluindo aí o automóvel, a internet e a energia elétrica. Quase tudo que somos, pode-se dizer, tem a ver com a criação de Gutenberg. Pensando nisso, aproximei-me o mais que pude daquela preciosa edição da Vulgata e fiz uma oração silenciosa em memória do velho inventor alemão. Depois, lancei o olhar ao redor e, sabendo estar cercado por dezenas de milhões de livros, antecipei o presidente da República e suspirei:

- Tem muita coisa escrita?

Essa é a minha angústia. Queria poder ler todos esses livros. Se não todos, pelo menos os que me interessassem. Digamos, uns 100 mil. Será que alguém algum dia leu 100 mil livros? O senador Paulo Brossard se orgulhava de ter um acervo de 20 mil obras, todas lidas. Uma vez, escrevi sobre João Neves da Fontoura e ele me ligou.

- Estou te mandando um exemplar da biografia do Neves da Fontoura - avisou.

Duas horas depois, um estafeta chegou à redação com o livro, um belo livro, um belo presente, fiquei encantado.

Delfim Netto superou Brossard: sua biblioteca tinha 300 mil volumes! Metade era de economia, outra metade de história, filosofia e antropologia. Ele doou tudo para a USP, não sem dor. Quantos terá lido?

Alguém que leia um livro por dia terminará 365 em um ano e 36.500 em cem anos. Logo, se você passar cem anos lendo DOIS livros por dia, não completará os 100 mil que eu gostaria de ler. Com o que, concluo que Delfim sofre de um mal que os japoneses chamam de tsundoku, que nada mais é do que a compulsão de comprar mais livros do que se é capaz de ler. Também tenho tsundoku. E também me atormento por não poder ler tudo o que gostaria. Decerto, é isso que aflige Bolsonaro. Ou será que estou interpretando mal o texto?

DAVID COIMBRA

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