segunda-feira, 13 de janeiro de 2020



13 DE JANEIRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Ode ao gato

Às vezes não sinto desprezo absoluto quando assisto a um musical ou a um filme de amor. Às vezes é apenas um pouco de tédio. Tempos atrás, fui ver um clássico da Broadway, O Fantasma da Ópera. Fiquei encantado com a riqueza do espetáculo, mas toda aquela cantoria para narrar a história quase me aborreceu. Parecia que estava assistindo à Sessão da Tarde com a minha irmã Silvia.

A Silvia adorava aqueles filmes do Elvis Presley em que ele estava conversando com a mocinha e, de repente, começava a cantar. Aquilo me irritava, mas, na época, não tínhamos muitas opções, era só a Gaúcha, a Piratini, a Difusora e, depois, a Guaíba e a Pampa. Então, eu desistia da TV e ia ler um livro. Os musicais, de certa maneira, foram responsáveis por algum conhecimento livresco que tenho.

Minha irmã antecipou um padecimento que sofreria com outras mulheres na vida adulta. É que as mulheres e o Ticiano Osório A-MAM musicais e filmes de amor. Assim, volta e meia sento-me na poltrona do cinema para assistir coisas como La La Land, que conseguiu juntar as duas modalidades: é um musical de amor.

Dando prosseguimento a essa minha sina, fui convencido pela Marcinha a ver Cats. Não o filme, a peça, outra campeã da Broadway, que está sendo levada aqui em Boston, num teatro belíssimo, o Opera House. Considerei razoável aceitar o convite, porque ouço falar em Cats desde os anos 80. Portanto, no fim de semana, lá fomos nós, eu, a Marcinha e o Bernardo. Quando sentei na plateia, sentia-me resignado. Quando levantei, sentia-me arrebatado.

Porque, cara, EU GOSTEI de Cats.

Entenda a surpresa que tive comigo mesmo: nesta peça, os atores passam o tempo inteiro pulando no palco com bigodes de gato pintados debaixo do nariz e rabos postiços pendurados na cintura. O enredo é pueril, apesar de baseado em poemas de T.S. Eliot, e de música boa mesmo há tão-somente uma, a consagrada Memory. Ainda assim, saí enfeitiçado do teatro.

Sabe por quê?

Por causa dos bailarinos.

A flexibilidade, a leveza e a elegância dos bailarinos fez com que, em meio à apresentação, eu acreditasse que ali havia, realmente, um bando de gatos. Tinha uma moça em especial, uma bailarina que nem está entre as principais, ela não canta e não ocupa o centro do palco, mas não conseguia tirar os olhos dela, porque ela É, de fato, uma gata. Não há outra forma de descrever seus movimentos a não ser dizer que são "felinos". Chama-se Mariah Reives, é uma jovem negra da Carolina do Norte que está participando pela primeira vez da turnê nacional de Cats. A elasticidade de Mariah parece habilidade de mutante: ela levanta a perna e encosta o joelho na orelha como se estivesse colocando a mão no bolso.

Lembrou-me um poema imortal do imortal Pablo Neruda:

"O homem quer ser peixe e pássaro,

a serpente quisera ter asas,

o cachorro é um leão desorientado,

o engenheiro quer ser poeta,

a mosca estuda para andorinha,

o poeta trata de imitar a mosca,

mas o gato

quer ser só gato

e todo gato é gato

do bigode ao rabo,

do pressentimento ao rato vivo,

da noite até seus olhos de ouro."

Recitei esse poema para a Marcinha e o Bernardo, depois do teatro, durante o jantar. Mas, no caminho de volta para casa, pensando um pouco mais, vi que estava errado. Eu não havia assistido a uma ode ao gato, era uma ode ao ser humano. À capacidade infinita do ser humano de, com disciplina, esforço e inteligência, fazer o que quiser. De se transformar no que bem entender. Seja num monstro que destrói, seja num anjo que protege. Ou, até mesmo, em um gato.

DAVID COIMBRA

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