28 DE JANEIRO DE 2020
ROSANE TREMEA
(Des)conforto
Naquela fatídica e inesquecível tempestade que completa "aniversário" de quatro anos amanhã, a maior parte dos porto-alegrenses ficou às escuras - 450 mil clientes, como a CEEE chama, tiveram cortes de energia. Por sorte, na minha casa, não faltou luz um minuto sequer. No último dia 15, forte, mas sem a mesma intensidade, o temporal que se abateu sobre a Capital deixou sem energia 300 mil, o equivalente a 46% dos moradores. E lá estava eu entre eles.
Fazia tempo que não experimentava algo que, na infância, era bem normal na minha terra natal. Bastava o vento soprar mais forte ou um acidente banal acontecer para que ficássemos sem luz na cidade abastecida por uma minúscula usina e com uma rede de distribuição precária. Dias e dias, às vezes. Era preciso improvisar, mas o fato não chegava a nos causar espanto.
No dia do casamento de um dos meus irmãos, uns 30 anos atrás, com uma festa preparada para uma pequena multidão, um poste da rede de alta-tensão foi derrubado e... tan-tan-tan... quase que a cerimônia teve de ser cancelada. Horas e horas de aflição depois, as gambiarras apareciam. Sem poder usar o secador, o cabeleireiro fez as mulheres da festa usarem uma espécie de uniforme: a maioria saiu do salão ostentando coques em tamanhos e versões variados. Era só o mais aparente dos improvisos. Por sorte, minutos antes do evento começar, fez-se a luz!
As memórias me vieram agora enquanto acendia velas decorativas em casa para iluminar a escuridão. Àquela altura, os (pequenos) inconvenientes haviam sido não poder abrir o portão (as maravilhas do mundo digital!), subir uns poucos andares a pé ou dormir sem ar-condicionado na noite calorenta. Mas, como as horas de cortes se sucederam, outros entraves apareceram: bem no início da manhã, a água acabou, e eu mal consegui escovar os dentes e lavar o rosto - minha imprevidência com estoques, de água que seja, não demorou a dar as caras.
Sem o carro deixado no estacionamento na noite anterior, fácil seria chamar um táxi ou aplicativo, mas quem dizia que o 3G funcionava (aliás, por que pago por um serviço 4G se nessas horas o que aparece na tela é 3?!). E a bateria do celular indo, indo... Nunca ando com dinheiro na carteira, e naquele dia por acaso tinha uma nota de R$ 100 novinha. Sorte! Mas pensei que poderia levar uma carraspana do motorista da lotação ou do cobrador de ônibus caso optasse por esse tipo de transporte. Embora atrasada, meu destino não estava distante, cerca de três quilômetros de casa. E resolvi seguir a pé, entre postes, fios e árvores caídos.
No caminho, fui pensando em o quanto é frágil esse nosso conforto de classe média. Em pouco mais de 12 horas, saí do cômodo mundo moderno e digital para um (quase) tempo das cavernas: sem luz, sem água, sem comunicação, sem transporte. Tão frágil quanto nós. Chegando ao meu destino, percebi que o tema das conversas de todas as pessoas era o mesmo: há quanto tempo cada um estava sem luz, como fez para se virar, como havia carregado baterias de celular, o que havia feito com os alimentos para não estragarem... E então uma delas deu a real: aquilo que para nós era um desconforto momentâneo (ainda ficaria umas quatro horas sem energia), para muitos é o dia a dia. Onde o mundo moderno e digital não chega, o tempo das cavernas segue sendo o agora.
*O colunista David Coimbra está em férias e retorna no dia 18/2 - ROSANE TREMEA - INTERINA
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