sábado, 16 de março de 2019



16 DE MARÇO DE 2019
J.J. CAMARGO

OS MUITOS JEITOS DE IR EMBORA

A morte sempre representou o protótipo mais completo e definitivo da partida, mas a longevidade também produz modelos dolorosos
A Gente Vai Embora, este vídeo do Sérgio Cursino, um radialista experiente, que viralizou na internet na virada do ano, incluiu alguns clichês inevitáveis, mas impactou pelo uso de palavras simples e didáticas. As frases "o cão que amamos será entregue a outro dono e se afeiçoará a ele" ou "as coisas que nem emprestávamos serão doadas ou jogadas fora", porque a gente vai embora, revelam a fragilidade das nossas âncoras afetivas e a dificuldade que temos em assumi-la.

A sensação final é de que somos essenciais apenas para nós mesmos, mas um pouco menos importantes para o microcosmo que nos rodeia e completamente substituíveis (e, tantas vezes, com vantagem!) para o resto da mundo, que não tem nada com isso.

A morte, com seus múltiplos eufemismos, sempre representou o protótipo mais completo e definitivo de irmos embora, mas a longevidade, tão festejada, tem produzido outros modelos, não necessariamente menos dolorosos.

A Maria Marta tinha uns 60 anos quando foi operada, e guardei dela uma lembrança carinhosa e bem-humorada. Mais de 20 anos depois, marcou uma consulta, que se iniciou com uma frase desconcertante:

- Doutor, eu perdi meu marido e preciso muito que o senhor me ajude a encontrá-lo.

Surpreendido com a abordagem, muitas ideias percorreram minha cabeça: "Será que o marido morreu e ela quer que eu a ajude a morrer, para reencontrá-lo? Mas que louca! Não pode ser, não com esta serenidade!". Ou: "O Rosalvo saiu de casa e desapareceu? Não deve ser, os velhos odeiam sair do lugar! E, além disso, dar no pé é coisa pra quem tem ânimo e tempo pra recomeçar!". Desconfio que a maioria dos muitos velhos que conheci morreria de cansaço antecipado, só de pensar em fazer tudo outra vez, mesmo que tivessem certeza de que fariam melhor.

Para interromper a perplexidade estampada na minha cara, ela atalhou:

- E o mais impressionante é que apesar dos 83 anos, ele continua o mesmo homem forte e bonito que eu sempre adorei! Na minha lembrança, tudo começou a sair dos trilhos há dois Natais, quando ele cumprimentou formalmente cada neto, sem abraçar nenhum deles. Naquele momento, eu soube que tinha alguma coisa muito errada, aquele não era mais o meu Rosalvo. Consultamos especialistas, que solicitaram exames de imagem e concluíram que os achados eram compatíveis com a idade. Então, eu decidi ouvi-lo, porque se eles estiverem certos, preciso da sua ajuda: o que vou fazer com este velho, que se parece tanto com o meu Rosalvo, mas não tem nada daquele homem maravilhoso, que amei tanto, e com quem me habituei a dormir de mãos dadas nos últimos 63 anos?

Difícil consolar quem descobriu que a morte sem cadáver é a mais dolorosa, porque impede a roda de girar.

J.J. CAMARGO

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