16 DE MARÇO DE 2019
PAULO GLEICH
Curtir uma fossa
Mesmo que talvez já seja peça do museu da linguagem, todos conhecem a expressão "curtir uma fossa". Parece um paradoxo: como se pode curtir algo que é ruim? A sabedoria popular revela uma verdade: sim, de fato curtimos uma fossa. Uma parte de nós gosta de sofrer, especialmente quando a dor é de amor.
A fossa é um nome popular para depressão, tristeza, especialmente após o fim do amor. Mas, literalmente falando, ela é um buraco. E é isso que acontece quando termina uma relação: fica um buraco. Tudo parece perder o sentido, vão-se embora de planos grandiosos a pequenas coisas do cotidiano que dão forma e consistência à vida. Como canta Adriana Calcanhoto, "o meu amor me deixou, levou minha identidade, não sei mais bem onde estou, nem onde há realidade".
Uma separação, sobretudo quando somos quem fica - quem vai provavelmente já tem outros mares em vista - tira o chão, em alguns casos também o teto. Pode ser uma experiência enlouquecedora. De uma casa feliz passa-se a habitar a fossa, que como é bem sabido também é para onde vão os detritos da casa. Não à toa: ao sermos deixados por quem amamos, nos sentimos o resto dos restos.
A fossa expõe algo fundamental da nossa condição: precisamos nos sentir amados para existir. Temos a sensação de ser alguém graças ao que os outros, sobretudo quem nos ama e a quem amamos, nos devolvem de nós mesmos. Uma perda amorosa é também a perda de nós mesmos, pelo menos de um pedaço importante de nós.
Por isso, após uma perda, é inevitável passar um tempinho na fossa - e seria estranho se isso não acontecesse. Enquanto a curtimos, podemos lamber as feridas, aproveitá-la para chorar por tabela dores mais antigas e ainda não exorcizadas. É também um tempo de luto, de despedir-se do outro no nosso tempo e do nosso jeito: o tempo do relógio é diferente do tempo singular de cada um, os fatos nos atropelam e precisamos de um tempo para processá-los.
Mas a fossa pode ser uma armadilha. Se não enxergamos além dela e achamos que é a única morada possível, logo nem mais sentimos a escuridão e o cheiro ruim. Se a curtimos demais, podemos inclusive torná-la um castelo, protegido por altas muralhas que não deixam ninguém entrar - nem nos deixam sair. Quem habita a fossa por muito tempo acaba esquecendo que um dia viveu numa casa mais alegre.
A fossa pode parecer um lugar ruim, mas pelo menos é um lugar. Ficar na fossa é uma forma de garantir a identidade: somos os pobres coitados abandonados pelo outro malvado, somos quem nunca tem sorte no amor, somos as vítimas do destino, somos horríveis e não amáveis. Parece absurdo, mas o sofrimento pode acabar sendo o único consolo de quem fica sem chão.
Ficar na fossa é uma tentativa de manter vivo o que acabou: a vida e a existência continuam ligadas ao outro, mesmo que por sua ausência. Carinho e afeto viram rancor e ressentimento, mas segue-se numa relação com quem já não está mais. A fossa eterna é a impossibilidade de aceitar que algo acabou; é um casamento com um defunto, um monumento mórbido ao amor perdido.
A fossa é egoísta, só cabe uma pessoa - e vários fantasmas - dentro. Também é segura: é pequena, conhecemos bem seus limites, não há surpresas. Uma fossa bem curtida, porém, é aquela na qual vão se construindo as condições para sair dela. Sair da fossa é um ato de coragem: é voltar a se abrir ao amor, que, por ser vivo, nunca é igual - nem garantido.
A fossa expõe algo fundamental da nossa condição: precisamos nos sentir amados para existir. Temos a sensação de ser alguém graças ao que os outros nos devolvem de nós mesmos. Uma perda amorosa é também a perda de nós mesmos.
Paulo Gleich escreve a cada 15 dias neste espaço. Na próxima semana, leia a coluna de Christian Dunker
PAULO GLEICH
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