23 DE MARÇO DE 2019
MÁRIO CORSO
Alma de vira-lata
Minha filha adotou um cão vira- lata. Manjericão é um simpático guaipeca de quatro costados. Curto sua presença lembrando Nelson Rodrigues, grande intérprete do país. Ele insistia em que nós, brasileiros, teríamos alma de vira-lata. Concordo com ele em duas pontas: porque eles são os mais robustos e fiéis dos cães e porque o brasileiro é mestiço como eles.
Mas a questão era outra, ele se referia a um complexo, uma ideia de acreditarmo-nos sem pedigree e, por isso, inferiores. Essa crença não se basearia necessariamente na realidade, seria como um narciso ao contrário, que cospe na pátria que habita.
De fato, desde que me conheço por gente, ouço o mesmo alerta: o Brasil está à beira do abismo. Entra e sai governo, trocam-se cores e partidos, e a melodia segue igual: é sempre o fim dos tempos. Nunca antes o governo teria sido tão incompetente e corrupto, nem a decadência moral tão explícita.
A fazenda pública rumaria para o buraco, já estava ruim, mas agora viveríamos o pior. Se a economia vai mal, é o esperado, revelando a senda natural de nossas más escolhas, o justo para nossa natureza equivocada. Mas caso a economia ande bem, seria um engano, mais adiante a conta chega. Se os índices sociais melhoram, lembram que existe muita miséria, e que temos um passivo social gigante a resolver.
Qualquer mínimo sinal negativo nos aponta o inferno. Com uma inflação júnior, já enxergamos um dragão indomável. A Olimpíada e a Copa que sediamos, ambas desvelariam ao mundo nossa incompetência gerencial congênita. Não foi bem assim. Mas tanto faz, igual erramos, mesmo se não.
Sei que não vivo na melhor das nações, mas acredito que poderíamos ter uma visão mais racional se o pessimismo não nos fosse útil para outros fins. Creio que os alarmistas querem dizer que eles não têm nada com isso, os culpados seriam os outros. O Brasil do não fui eu.
O mais insensato sintoma desse complexo é a idealização das outras nações. Entre os europeus, no último século, por duas vezes, um lado tentou exterminar o outro. Os Estados Unidos exportam guerras para manter seu consumo desmesurado. Mas eles é que seriam o farol de civilização a seguir.
No largo espectro das doenças ditas depressivas, o que há em comum entre elas é a desistência antecipada dos sonhos possíveis. Os apocalípticos não enxergam o país, e sim sua própria melancolia. É o seu projeto de nação que já não decola. Essas ideias viralatistas dizem mais de quem as enuncia do que do Brasil.
O melancólico sofre por uma morte mal enterrada que o assombra sem descanso. Carrega um luto indigesto que drena sua energia. Qual seria esse encosto, esse zumbi que afeta o Brasil? A escravidão? O populismo? A ditadura militar? Ou a teimosia em insistir em fazer um país sem romper com a escandalosa assimetria social?
MÁRIO CORSO
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