07 DE MARÇO DE 2019
O PRAZER DAS PALAVRAS
FOLIONA
PELA REGRA, O FEMININO de folião é foliona, mas lá vem foliã correndo por fora. Como em todos os anos, o Carnaval veio mais uma vez figurar nesta coluna. O leitor Giacomo M., caxiense radicado no Rio de Janeiro, estranhou muito uma manchete do jornal O Globo desta semana: "Foliona é atropelada por ônibus durante bloco no Flamengo". Bem-humorado, ele comenta: "De onde saiu a tal foliona? Já estou chegando na casa dos quarenta e nunca tinha ouvido falar nesse estrupício! Não deveriam ter escrito foliã, como sempre foi? Ou estou aqui dizendo bobagem?".
Caro Giacomo, mesmo que possa parecer um paradoxo, a resposta é não para tuas duas perguntas: nem eles erraram ao escrever foliona, nem tu estás dizendo bobagem, como vais entender logo, logo. É importante notar que estamos entrando no nunca assaz estudado grupo dos nomes terminados em -ão, com sua peculiar flexão de número e de gênero. O plural é um velho problema, como bem deves lembrar do tempo da escola. Aos vocábulos irmão, leão e alemão, por exemplo, embora tenham terminação idêntica no singular, correspondem irmãos, leões e alemães - o que sugere que vocábulos de origem diversas tenham convergido, no singular, para um -ão genérico, mantendo, infelizmente, as diferenças no plural.
Por que digo infelizmente? Porque o ideal seria que tivéssemos uma forma única para o plural - ou três singulares diferentes com três plurais diferentes, como ocorre na nossa irmã mais próxima, a língua espanhola. Onde o plural espanhol termina em -anos, nós usamos -ãos (hermanos: irmãos); onde termina em -ones, usamos -ões (leones: leões); e onde termina em -anes, usamos -ães (alemanes: alemães). Ao ciudadanos deles corresponde o nosso cidadãos; a campeones, o nosso campeões; a capitanes, o nosso capitães. Como nossa língua é viva e em eterna mutação, há claros indícios de que ela se encaminha para regularizar este sistema, elegendo como o vencedor desta corrida o plural em -ões, adotado por todas as novas criações lexicais e por todos os (incontáveis) aumentativos.
O gênero dos nomes em -ão também tem suas peculiaridades: afora três palavras desgarradas (sultana, Juliana e Joana), as terminações possíveis para o feminino são ou -ã (capitã), ou -oa (patroa) ou -ona (brincalhona). Ora, esta última terminação é obrigatória quando se tratar de feminino de vocábulo aumentativo ou pejorativo: solteirona, bobalhona, chorona, comilona, barrigona, - e, por isso mesmo, foliona. Talvez o leitor não tenha se dado conta, mas folião era pejorativo, pois folia, no seu sentido primitivo, significava "loucura"; é assim que aparece em nossos cancioneiros medievais.
Gil Vicente, no século 15, mais ameno, emprega o termo para designar uma dança pastoril, acompanhada de flauta e pandeiro, mas dois séculos depois o severo Bluteau, o patricarca de nossos lexicógrafos, recupera o significado primitivo e define folia como "Dança com muitas soalhas e outros instrumentos, com tanto ruído, extravagância e confusão que os que andam nela parecem doidos" (soalhas são chocalhos com aqueles mesmos discos de metal que estão presentes nos pandeiros). Aos poucos, é verdade, folia foi perdendo esta forte carga pejorativa para designar qualquer festa popular animada, com música, barulho e fantasias (isso aparece bem claro no Francês, onde o Folies Bergère é uma casa de espetáculos de variedades) - mas o termo folião já estava condenado, no nosso léxico, a viver no mesmo bairro que termos como mandão, comilão ou doidão.
É por isso que os dicionários usuais registram apenas foliona, como escreveu o jornal. Só vi a variante foliã admitida por um dicionário português. Mas, como eu disse, caro Giacomo, não é para desanimar. Como os nomes em -ão têm tantas espécies e subespécies, no laboratório da língua viva podem surgir formas alternativas, muitas delas já aceitas no registro culto: anfitriã e anfitrioa; tabeliã e tabelioa; sem esquecer nosso tradicional alemã e alemoa. Ora, se o feminino de castelão pode ser castelã, casteloa ou castelona, e se estão registrados pares como sabichona e sabichã, folgazão e folgazã, pode ser que em breve, democraticamente, com os mesmos direitos, a tua foliã ganhe um ingresso para figurar no camarote vip da língua culta.
CLÁUDIO MORENO
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