26 DE JANEIRO DE 2019
J.J.CAMARGO
NÃO MORRER ANTES DE MORRER
Exceto naqueles momentos de grande introspecção em que consideramos que uma pausa no mundo é a melhor terapia, a solidão e seus silêncios simbolizam o isolamento involuntário, e amargura e ressentimento as suas crias obrigatórias.
Quando um jovem se confessa destruído por uma separação inesperada, e se imagina original no anúncio de que nunca mais amará ninguém, mesmo com as infinitas possibilidades de conquista, penso sempre em viuvez na velhice, quando não há mais ânimo, tempo, saúde ou charme para recomeçar o itinerário da sedução.
Só então se percebe que a nossa vida está presa por amarras muito frágeis. E, de tanto ouvir os idosos se lamentarem, entendi o quanto é verdadeira a sua súplica: "E Deus me ajude que eu morra antes da minha velhinha". A crescente e festejada longevidade tem produzido esses pares avulsos, em que um tem ao outro e a ninguém mais. Comove a percepção de que não importa quantos filhos tenham tido, quem se aventurar a viver demais descobrirá a altura do muro da autonomia, construído pelos tijolos da indiferença, e todos com vidas próprias terão suas justificativas sinceras, porque afinal nem todo dia é Natal.
Chega-se, então, ao ponto de buscar um lar onde os velhos descartados possam compartilhar suas mágoas e multiplicá-las com a repetição de suas histórias de abandono.
Atul Gawande, um cirurgião indiano que sempre viveu em New York e acompanhou com proximidade e afeto a dolorosa despedida do pai, narra no seu maravilhoso livro Os Mortais a saga dessa população, cada vez mais numerosa e exigente.
A proliferação dessas casas de repouso e a inevitável competição entre elas têm impulsionado a criação de modelos de convívio mais digno, evitando que se transformem em depósito de moribundos à espera da libertação. Replicar o ambiente doméstico com a instalação de uma coisa simples, como uma cozinha independente, já é capaz de restaurar o interesse pelo cuidado do seu próprio cantinho, e com isso dar algum sentido ao despertar pela manhã.
Outros diretores tiveram a ideia de levar alguns animais, cujos cuidados serviriam para mantê-los ocupados. Foi assim que pássaros, cães e gatos passaram a ter função numa grande clínica com dezenas de unidades espalhadas pelos EUA.
Um velhinho identificado como Mister L perdeu a esposa depois de 65 anos de casamento. A depressão que se seguiu era previsível, mas todos ficaram muito preocupados depois de um acidente bizarro em que ele desceu um barranco com a camionete. A polícia sugeriu a possibilidade de tentativa de suicídio, e a família, impossibilitada de vigiá-lo o tempo todo, decidiu interná-lo em um desses lares modernos. Os primeiros dias foram terríveis, porque ele não aceitava comida, nem banho, nem sair da cama.
Parecia determinado a acelerar a chegada da morte. Então decidiram colocar uma gaiola com dois periquitos na mesinha de cabeceira. No dia seguinte, ele, que se mantivera virado para a parede durante uma semana, mudou de decúbito para ficar de frente para os passarinhos. Depois, passou a comentar com a enfermagem as peripécias dos animaizinhos e, na semana seguinte, quando já se sentara para comer, comentou que os pobres cães não podiam ficar encerrados em casa, e passear com eles no quintal era uma coisa que ele poderia fazer para ajudar.
Dois meses depois, estava apto a voltar para casa. A ideia da morte tinha sido transferida. Alguém lhe devolvera a única coisa realmente indispensável à sobrevivência de um solitário: a utilidade.
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