12 DE JANEIRO DE 2019
MÁRIO CORSO
Cortes autoinfligidos
Ainda não encontrei um livro que dê conta do novo protagonismo que o corpo vem assumindo nas últimas décadas. Esse corpo mimado por dietas e academias, esculpido a bisturi, decorado com tatuagens e pier- cings, que dá trabalho e do qual tanto se espera.
Sempre fomos através de um corpo, é óbvio, mas nunca precisamos tanto de um para ser alguém. Está fora de moda apenas ter sucesso, ser admirado, é preciso que o biótipo demonstre isso. O corpo faz parte do triunfo, ou ele não é total.
Em resumo: o valor que damos à nossa compleição física cresceu. Sem saudosismos, talvez seja porque descobrimos que não temos um corpo, e sim somos um corpo. Seria uma mudança e tanto. Historicamente nos concebemos como uma alma presa à matéria, e não como um organismo em que brota uma subjetividade. Talvez em ato estejamos à frente da ideia que temos de nós mesmos, já vivendo um pensamento que virá.
Mas a divagação é para situar um problema que preo- cupa pais e professores: muitos jovens estão secretamente se cortando. Primeiro acalmem-se, o mundo não piorou, não é mais desesperador do que era, apenas os sintomas transmutam-se. Tanto como antes não nos tatuávamos tanto - escolhendo um dos exemplos de fenômenos da nova ordem corporal -, não nos cortávamos tanto. Portanto, é preciso inserir o gesto nesse novo momento no qual "falamos" mais desde o corpo. Os mais velhos se assustam por não conhecerem esses mecanismos do dialeto corporal recente, por isso lhes parecem tão pungentes.
O que temos é um sofrimento agudo que não encontra outra forma de se expressar. É preciso que esse sujeito seja escutado, que entenda sua dor, para que possa ser dita de outra maneira. Acompanhado de alguém que entenda sua dor, ela talvez não precise ser corporalmente encenada.
Geralmente os cortes são uma tentativa desesperada de estancar uma angústia, transformando-a em dor física, e dar visibilidade ao sofrimento psíquico. Também possibilitam parar para retomar depois, pois, restando a marca, não será esquecida. É uma dor que não pode ser deixada de lado, tampouco é possível suportá-la o tempo todo. É um corte na carne e na cena. Por isso nos relatos o corte é dito como um alívio momentâneo.
Machucados cicatrizam e tornam-se memórias inesquecíveis, que deixaram de sangrar e doer, mas como se o sofrimento tivesse deixado uma assinatura. Porém, se a dor de uma ferida psíquica fechar suturando um lamento que não se transformou em palavras, ela voltará iniciando novos apelos, que podem ser vistos mas não escutados. Ao invés de calar as dores com analgésicos para a alma, convém lembrar: esses machucados só cicatrizam de verdade se for de dentro para fora, é preciso deixar sangrar as palavras até que as dores sequem.
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