12 DE JANEIRO DE 2019
CHRISTIAN DUNKER
PAULO FREIRE
Jamais me esquecerei da conferência de Paulo Freire na Faculdade de Educação da USP em 1987. Tempos de redemocratização do país, para a qual ele trazia a experiência da África que tinha adotado sua concepção de alfabetização. Ele tinha ido receber um prêmio em um destes países, talvez fosse o Zimbábue, e o dignitário local foi buscá-lo no hotel. Como parte dos costumes locais, em sinal de reverência e acolhimento, o tal sujeito tomou a mão de Paulo Freire e saíram assim, de mãos dadas, caminhando pela rua. Um exemplo prático e impactante de sua tese mais importante, discutida em Pedagogia do Oprimido: reconhecer o saber e o modo de vida do aprendente.
Cada um aprende a partir de sua própria posição e história, seja ela de riqueza ou pobreza, de mulher ou homem, de negro ou branco. A ideia é tão forte quanto simples. Fazer valer a leitura que cada um já tem do mundo, para em seguida expandir ou tirar para fora, no sentido literal e latino de educere, torna cada um sujeito de sua própria viagem de conhecimento, o que antigamente chamava-se formação. Ideologia, ao contrário, é achar que a criança ou o adulto analfabeto é uma página em branco, que a gente preenche como uma conta bancária.
A ideia pareceu-me incrivelmente psicanalítica, ou pelo menos lacaniana, no sentido de que aprendíamos a não inserir palavras ou intenções na boca de nossos pacientes. Nunca, jamais em tempo algum, querer impor o seu saber de modo a sugestionar o analisante em um sentido específico e consequentemente destituí-lo como agente de seu próprio processo.
Por outro lado a imagem da vergonha relativa que o grande mestre tinha sentido, e compartilhara conosco, era uma segunda lição imensa. Não é um problema possuir valores e preconceitos se você está disposto a enfrentá-los, expondo-os à experiência que transformará os envolvidos. Reconhecer o ponto de vista do outro, na contradição produtiva que ele traz com o seu, exprimia-se na cena de dois homens andando de braços dados em público.
Quando cheguei à Inglaterra, por volta de 2001, para fazer meu pós-doutorado, perguntei o que eles sabiam sobre o Brasil. A reposta foi clara e repetitiva: em termos intelectuais? Paulo Freire. Visto como uma espécie de Franz Fanon da educação, um dos pais da teoria pós-colonial, ele é o que temos de mais próximo de Pelé no futebol acadêmico.
Ainda que fosse um Tarciso ou Valdomiro, ele é o cara que todo mundo conhece. Se você duvida, consulte um site chamado Google Scholar. Pelo mundo afora acostumei-me com essa resposta, até que pude conhecer sua filha, Madalena Freire, também educadora. Ela tinha colocado em prática um modelo de formação de professores nas comunidades dos morros do Rio de Janeiro, baseado na apropriação e na escrita da história de si. Tornar-se autor. Estava ali a mesma ideia novamente.
Portanto, quando vejo nosso novo governo declarar uma limpeza étnica do lixo marxista nas universidades, começando por Paulo Freire na educação, não consigo deixar de pensar como suas ideias deram certo. Foi graças a essa valorização cultural do ponto de vista do outro que os discursos mais ignorantes, como os que Olavo de Carvalho, mentor desta barbárie que se anuncia, puderam se apresentar como uma opinião entre outras.
Terra plana, conspiração gay-comunista, Darwin e Newton, esta dupla de idiotas, tudo vale como um ponto de vista digno de respeito e consideração, ainda mais quando enunciado do alto das goiabeiras em flor. A culpa é mesmo de Paulo Freire. Se não tivéssemos levado tão a sério o que ele disse, jamais teríamos permitido que pessoas sem formação acadêmica formal ou instrução credenciada pudessem externar tais opiniões sem vergonha (no duplo sentido). O que ele não podia prever é que, depois de tudo, em sua própria terra, ele não teria vergonha, mas medo, de andar de braços dados com outro homem.
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