sábado, 5 de janeiro de 2019



05 DE JANEIRO DE 2019
FRANCISCO MARSHALL

NOVOS TEMPOS

A pátria do zodíaco, do sistema duodecimal, da astronomia e de nosso sistema de calendário é a Mesopotâmia antiga, dos sumérios (III milênio a.C.), que fundaram tradições, dos babilônios (II milênio a.C.), que as levaram ao apogeu, e destes aos assírios (I milênio a.C.), que consolidaram e difundiram a uma tradição enciclopédica. 

Este legado chegou a nós através dos gregos, que aprenderam com os assírios, em um tempo, por volta dos séculos VII e VI a.C., em que a filosofia bebia em fontes orientais. O teu relógio de pulso (se ainda tiveres...) é testemunho deste legado, na ordem do tempo, nos números e no triunfo de um pensamento sistemático, que nos trouxe aos conceitos e às tecnologias modernas.

A principal festa dos mesopotâmicos antigos era o rito do a-ki-tu (ou a-ki-til, como o chamava Mircea Eliade), grande celebração da passagem do ano, no apogeu da colheita da cevada e junto ao equinócio primaveril. Era a festa de renovação cósmica, cujo clímax era a celebração das bodas entre o rei e a grande sacerdotisa, a famosa hierogamia (matrimônio sagrado), realizada publicamente no topo de um zigurate. 

Da força daqueles ritos, reforçada por muitas tradições culturais de renovação cíclica, provêm os afetos e costumes que nos fazem acreditar que o ano renovou-se, que há uma passagem e que são novos tempos, que podemos virar página, sepultar erros e desencantos, e entrar no ano novo de alma cândida, cheios de esperança e otimismo. As cigarras e os sabiás nada sabem disso, e os cães só o notam porque os atormentamos com foguetes inconvenientes. Todavia, é boa esta sensação de renovação, champagne entre amigos, bons votos, a força da esperança restaurada. Feliz Ano-Novo, caro(a) leitor(a)!

Quem mais festejava esta data era o rei, e, junto com ele, o corpo sacerdotal, em festa, poder renovado. Para os antigos, a bonança era justificada pela fecundidade proveniente destes ritos e da potência dos soberanos. Imperadores junto a cornucópias e governantes iniciando colheita ilustram moedas e propagandas, de Roma à marquetagem atual. Por um singular infortúnio, nós, brasileiros, realizamos a posse de novo(a) presidente eleito(a), a cada quatro anos, no dia primeiro do ano, misturada às festas em que brindamos com esperança. São novos tempos?

Não estamos à sombra de um zigurate. Separemos memória, religião e história atual. Temos pela frente tempos muito difíceis, de terríveis ameaças à democracia, no Brasil e no mundo, de irracionalidades que prosperam com a potência de parafernálias digitais dolosíssimas, de forças obscuras que experimentam momentâneo triunfo, e avançam vorazmente contra o legado humanístico, iluminista e democrático. 

Os novos tempos conclamam em nós a força de muitas primaveras, o amor e a abnegação de muitas campanhas em que não há lugar para descanso ou alienação. Já aprendemos que a democracia não funciona no modo automático, e sim por esforço coletivo, mobilizações de mães e pais, discentes e docentes, cidadãos conscientes - todos com energias renovadas e de mãos dadas para os novos tempos.

FRANCISCO MARSHALL

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