quarta-feira, 5 de agosto de 2015



05 de agosto de 2015 | N° 18248 
PEDRO GONZAGA

O DICIONÁRIO DA VIDA


Escrever uma crônica em meio à confusão da cidade grande (algumas expressões nunca ficam antigas) passa – ao menos para mim – por fazer as pazes com seus ruídos, com o barulho dos carros, do novo bar que desconhece a hora do silêncio, com o som da televisão que chega carregando as promessas dos pastores e dos políticos, com os gritos que vêm do apartamento ao lado onde uma mulher há mais de 30 minutos dispara – sua ira não fraqueja um instante sequer – uma série de acusações (de traição a descaso) contra alguém do outro lado da linha, sem saber que ao fazê-lo se torna parte desta coluna, fato que muito provavelmente haverá de ignorar, protegida pelo anonimato da mesma cidade grande.

É a sina desse apartamento vizinho – a infelicidade doméstica, mais do que a esperada em outras habitações. Devia haver um alerta para isso na imobiliária, mas, dado os meus constantes atrasos no pagamento do condomínio, deixemos isso quieto. 

Antes vivera ali um casal que assistia a todas as partidas de futebol juntos, por um regimento que nunca fui capaz de compreender, porque ela odiava cada minuto daquilo. No meio do primeiro tempo, começavam a se xingar. Nas noites seguintes, ela chorava, ele chorava, até a próxima rodada. Um dia se separaram. Agora nossa nova inquilina brada: “Tu acha que eu sou uma imbecil?”.

Admito que deitando na cama enquanto escrevo, sinto um alívio por não ser eu a receber aquele telefonema. E então me lembro de Drummond: “As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios/ provam apenas que a vida prossegue/ e nem todos se libertaram ainda”.

A grande poesia é uma espécie de dicionário da vida. Os versos são suas estruturas básicas, seus verbetes. Se lidos depois da experiência, eles a nomeiam. Se lidos antes, clarificam-na. A etimologia do amor está num soneto de Camões, o melhor sinônimo para nostalgia, num passo de Álvaro de Campos: “O que eu sou hoje/ é terem vendido a casa/ é terem morrido todos/ é estar eu sobrevivente a mim-mesmo/ como um fósforo frio”.

Ao terminar a crônica, a ligação foi encerrada, parece que a mulher chora. Mas pode ser um riso. Os ruídos urbanos são sempre confusos.

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