27 de agosto de 2015 | N° 18275
DAVID COIMBRA
Desejo de matar
Outro dia, um americano me contou que o pai dele foi assaltado em Nova York em 1973. O homem ficou tão traumatizado, que nunca mais voltou à Big Apple. Nas suas férias, ele prefere ir para... o Rio de Janeiro! O americano meu amigo disse que vive a jurar para o seu pai que Nova York agora é segura, que ele pode ir lá. Não adianta. O velho só vai para o Rio. Já foi assaltado três vezes em Copacabana, mas volta sempre.
Não me surpreende. A cidade do Rio é como certas mulheres: perigosa, mas sedutora. Cada um que calcule se vale a pena correr o risco.
Neste caso, porém, o que mais me chamou a atenção foi a lembrança de Nova York nos anos 1970. Naquela época, até a Times Square era ameaçadora. Charles Bronson estrelou um filme de ação chamado Desejo de Matar. Interpretava um morador de Nova York que teve a mulher assassinada e a filha estuprada por bandidos. Tornou-se, por isso, um justiceiro. Saía pelas ruas exterminando foras da lei à bala.
Um filme desse tipo nunca será o que se chama de grande arte, mas atende ao apelo do seu tempo. Os americanos, acossados pela violência, também sentiam desejo de matar os bandidos que lhes roubavam os bens e a paz, e assim o filme fez enorme sucesso. Tanto, que Bronson seguiu dando tiros em Desejo de Matar 2, 3, 4 e 5. Só parou 20 anos depois, quando os Estados Unidos mudaram e as pessoas se acalmaram.
O que mudou dos anos 1970 para os 1990?
Os Estados Unidos tornaram-se um país mais seguro. O que parece estranho de afirmar, um dia depois de o mundo ter assistido, perplexo, às cenas dos assassinatos de dois jornalistas da Virgínia. Mas isso acontece porque qualquer estressado pode comprar uma arma nos Estados Unidos, não por ação da criminalidade profissional. Há quase 300 milhões de armas em poder dos cidadãos americanos. Um problema, se você está diante de um maluco que não tem nada a perder.
Ainda assim, o pai do meu amigo poderia passear tranquilamente por Nova York, mesmo tarde da noite, sem correr riscos. Em algumas regiões do país, casas e carros ficam abertos, sem que seus proprietários sintam a menor inquietação. E na comunidade em que moro, onde vivem outras 58 mil pessoas de todo o mundo, o último assassinato ocorreu há nove anos.
Curiosamente, os Estados Unidos também se tornaram mais desiguais, dos anos 1970 para cá. Há maior diferença entre os ricos e os pobres.
Como, então, se deu essa mudança?
Pela lei. Nos anos 1980, Ronald Reagan liderou um endurecimento da lei criminal. Qualquer delito passou a custar 10 ou 15 anos de prisão. Os presídios ficaram lotados. Os Estados Unidos do século 21 têm a maior população carcerária do mundo, com mais de 2,5 milhões de presos. E, claro, o sistema judiciário e a polícia também são aparelhados e eficientes.
Cito tudo isso por perceber que hoje, no Brasil, as pessoas sentem desejo de matar. Linchamentos se multiplicam pelo país, garis jogam carros de atropeladores no Arroio Dilúvio, e, nas redes sociais, a intolerância freme e ruge. Ontem, ante a notícia do assassinato dos jornalistas, comentei que sou contra liberar o porte de armas para qualquer um, e os leitores bradaram que preferem loucos armados a bandidos soltos.
Por que os brasileiros estão assim? Pela mesma razão que os americanos assim estiveram nos anos 1970. Por medo.
Qualquer animal, quando sente medo, transforma-se em fera perigosa. Um rato acuado salta no pescoço do homem que tenta esmagá-lo a vassourada. O medo desumaniza.
Até os que defendem a tolerância e os direitos humanos terão de trabalhar com afinco para que as pessoas deixem de sentir medo no Brasil. Nenhum bom argumento, nenhuma ponderação, nenhuma racionalização jamais será maior do que o desespero.
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