04 de agosto de 2015 | N° 18247
CARPINEJAR
A minha primeira carteira de motorista
Tirei a minha primeira carta de motorista dentro de um supermercado.
Tinha cinco anos. Já não entrava mais no banquinho de bebê do carrinho, muito menos me equilibrava na grade de trás, junto com os produtos.
A mãe precisava me ocupar. Queria que não incomodasse para comprar salgadinho, bolacha recheada, sorvete e refrigerante. Ela sabia o perigo que era qualquer criança de pé e sozinha, com a possibilidade de mexer nas prateleiras com liberdade.
Lembro claramente quando, numa tardezinha de sexta-feira, ela me ordenou:
– Hoje, você leva o carrinho. Toma! – Eu?
O mercado estava lotado, véspera de Carnaval.
Não explicou como se manobrava. Não me deu aula de direção. Não treinou balizas. Não realizei nenhum psicotécnico, exame médico e prova teórica.
Entregou o veículo com displicência, avaliando o ato como fácil e instintivo.
O “toma” me marcou definitivamente. Eu merecia um tutorial. Afinal, o que há de gente que nem consegue pilotar um guarda-chuva e vive batendo em quem está se protegendo nas marquises.
De uma hora para outra, tornei-me o responsável pelas compras da casa. Não lia e nem escrevia, e já dirigia carrinho de supermercado.
Aquilo me envaideceu, meu primeiro grande passo de adulto, e também me enervou, talvez fosse o meu primeiro grande tropeço de adulto.
Assumi o comando da barra com as duas mãos, tremendo, suando barbaridade, mal enxergava um palmo à minha frente.
Cauteloso com a função, comecei devagarinho, a 0,01 km/h, mas ela me pediu que andasse mais rápido pois não contava com a noite inteira.
Foi quando colidi com o enorme traseiro floreado de uma senhora selecionando verduras.
– Uiii! Também foi a primeira vez que fiz uma mulher gemer na vida.
– Olhe por onde você anda, menino! – ela protestou.
Em vez de me apoiar, a mãe engrossou o coro:
– Mais atenção para não atropelar as pessoas, senão tiro o carrinho de você.
Eu não havia pedido para dirigir, mas a arte materna consistia em transformar suas imposições em nossas escolhas.
Segui por mais quatro corredores, já rezava para que aquilo terminasse logo, que a listinha encurtasse de repente, que a mãe não entendesse mais sua letra.
Na grande quina das bebidas com os itens de higiene, realizei uma curva muito fechada e não vi a pilha de galões de clorofina em promoção.
Dei no meio: garrafas voaram para todos os lados. Criei um lago de água sanitária na entrada dos caixas.
Lavei o súper e instalei um pânico de rodos, panos e vassouras entre os empacotadores.
O cheiro da água sanitária vem junto com a lembrança. Inspiro com força até umedecer os olhos, e recordo de cada detalhe desse entardecer emocionante, em que comprei minha primeira carta de motorista dentro de um supermercado – e não saiu barato para o Zaffari.
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