sábado, 22 de agosto de 2015


23 de agosto de 2015 | N° 18271 
ANTONIO PRATA

Meu reino por uma pamonha


Todo dia, às 6:45 da manhã, eu subia a Teodoro a caminho da escola e do fundo do ônibus via, espremido entre um boteco e uma loja de colchões, o letreiro triunfal: “Reino das persianas”.

Janelas, se não me engano, não foram a maior contribuição arquitetônica da Idade Média – o sujeito que numa tarde ensolarada do medievo quisesse ouvir o gorjear dos pintassilgos e se debruçasse sobre um batente corria o risco de acabar com lepra, peste negra ou uma machadinha encravada na testa –, mas no “Reino das Persianas”, imaginava eu, dormitando no Lapa C, a coisa seria diferente.

Os castelos teriam janelas de todos os formatos e tamanhos e delas penderiam as mais incríveis persianas: de aço reluzente, como armaduras, de marfim e esmeraldas, dadas por reis Zulus, de seda pura, trazidas do oriente no lombo de camelos, elefantes e escravos. Enquanto a Europa mergulhava na Idade das Trevas, o reino da Teodoro seria banhado por delicadas réstias de luz.

Passei muitos anos acreditando que a tal monarquia veneziana fosse o ápice da fantasia, um universo paralelo que nenhum Tolkien, nenhuma J. K. Rowling ou Game of Thrones conseguiria superar, até o dia em que, perdido pelo Ipiranga, dei de cara com o “Império dos Azulejos” – um frio de porcelanato percorreu minha espinha. Vi exércitos marchando mundo afora, conquistando, masseando e azulejando, indiscriminadamente. 

Azulejariam estradas, florestas, praias, lagos e mares, azulejariam até, em praça pública, durante terríveis rituais de suplício, traidores e inimigos. (Aos prantos, os infelizes implorariam por clemência, mas as lágrimas só fariam excitar a turba que, em êxtase, os cobriria com saraivadas de argamassa.)

Alta madrugada, em seu leito de ladrilhos dourados, o imperador sonharia com o futuro: a Terra enfim transformada numa imensa área de serviço, refletindo a luz do sol como um globo de espelhos pendurado na ponta da Via Láctea.

Depois daquele delírio loução, temi pelo que viria a seguir: um Esquadrão das esquadrias? Uma Babilônia dos corrimões? Um Tutancâmon das dobradiças? Preparado que estava para o excesso, quase passei batido pela padaria: “Recanto dos pães”.

Num primeiro momento, fiquei contente. Aquelas broas, baguetes e bisnagas não sofriam de megalomania, não queriam empanar súditos nem soterrar colônias com sua farinha: precisavam só de um canto, ou melhor, de um “recanto” para descansar as atribuladas leveduras.

Aos poucos, porém, a imagem daqueles pães cansados foi-me trazendo certo desconforto – lembrei de um tigre magro e sujo que vi um dia, dormindo à sombra num zoológico do interior. Pães não repousam. Não se recolhem. Um pão em seu “recanto” é um pão murcho e triste, um pão que perdeu o seu propósito de morrer belo e jovem em prol da humanidade, como um mártir, um espermatozoide ou um melão.

Passei umas semanas aflito. Teríamos que optar entre a sanha conquistadora e o pão amanhecido? Seria a dicotomia entre o sangue e o bolor um retrato da desmedida de nossos tempos? Fui salvo da melancolia no quilômetro 27 da Raposo Tavares – lado direito, sentido SP –: “Rancho da pamonha”. Nem “Confederação do milho”, nem “Asilo das espigas”. Rancho. Pamonha. E ponto.

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