
Silêncio digital
O padre Júlio Lancellotti, 76 anos, está proibido de falar nas redes sociais. É uma ordem da Igreja. Suas tradicionais missas, celebradas semanalmente na capela da Universidade São Judas, na Mooca, zona leste da capital paulista, deixaram de ser transmitidas ao vivo. Assim como ele não pode atualizar os seguidores acerca dos trabalhos de caridade da Paróquia São Miguel Arcanjo.
A abstinência digital partiu do gaúcho Odilo Pedro Scherer, cardeal, arcebispo metropolitano de São Paulo. Com mais de 2,3 milhões de seguidores no Instagram, Lancellotti é um dos maiores influenciadores do catolicismo brasileiro.
Ainda que seja para o bem do sacerdote, soa como um retrocesso à liberdade de expressão. Aproxima-se de uma Inquisição medieval em plena pós-modernidade - a política passa a se misturar a assuntos religiosos, a ideologia perigosamente dita os caminhos da fé.
Reprisamos o boicote contra a Teologia da Libertação. Há exatos 40 anos, a cúpula do Vaticano entendeu que a obra do teólogo e frade Leonardo Boff afrontava a doutrina, e o condenou a um ano de "silêncio obsequioso". Na época, ele atuava a favor dos pobres e sinalizava para a discussão de uma retomada democrática.
Da mesma forma, não vejo nenhuma disrupção ou desobediência no comportamento de Lancellotti. Suas ações não fogem dos ensinamentos do cristianismo: promover a inclusão de minorias e amparar moradores de rua de São Paulo.
Ele não está a serviço de sua vaidade, não se mostra interessado em obter poder, vender milhões de discos ou ser famoso. Não existe excesso pop de espetacularização de sua figura para benefícios pessoais. Adota uma postura franciscana de representatividade das camadas mais desassistidas da sociedade.
Se o propósito é protegê-lo de ataques e acusações de grupos extremistas no âmbito privado, a medida apenas o desautoriza publicamente e fragiliza sua defesa. Os microfones devem permanecer abertos para as mais diferentes vertentes do catolicismo.
Lembro-me das provocações folclóricas nos anos 60 entre Nelson Rodrigues e dom Hélder Câmara. Hélder, um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, advogava pelos direitos humanos na ditadura militar, enquanto Nelson, cronista conceituado, se declarava assumidamente reacionário.
Nelson transformou Hélder em seu personagem predileto, apelidando-o de "arcebispo vermelho" ou "padre de passeata". Não se furtou a elaborar entrevistas imaginárias com ele. "E súbito um nome ilumina minhas trevas interiores: - ?D. Hélder!?. De todos os vivos e mortos do Brasil, era ele o mais urgente, o mais premente. E, de mais a mais, uma batina é sempre paisagística."
Entre exageros burlescos e ofensas caricaturais, havia na rivalidade um respeito devoto, a ponto de Nelson solicitar que o arcebispo de Recife visitasse uma mulher que ele amava: "Há uma moça assim, assim, que eu amo. Que é tudo para mim. Essa moça está sofrendo. E eu queria que o senhor fosse vê-la. Faz isso para mim, d. Hélder, faz?".
Hélder foi quatro vezes indicado ao Nobel da Paz, o mais perto que chegamos da distinção sueca. Júlio Lancellotti é o novo Hélder.
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