
O tesouro escondido
Há quem acredite que o mal é irreversível ao se deparar com algumas notícias desta semana em Porto Alegre: mulher encontrada morta no lixo, homem baleado no ônibus. As tragédias vão nos dessensibilizando até perdermos a fé na humanidade.
Estamos carecendo de um espaço para os projetos de vida, para as utopias, para as descobertas pessoais. É como se não tivéssemos tempo para nada, porque vamos atrás do que realmente importa longe de nós.
Santo Agostinho, no fim de sua jornada, em suas Confissões, deu-se conta do erro: Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava fora!
Na mesma linha, um de meus autores prediletos, o filósofo e pedagogo austríaco Martin Buber (1878-1965), naturalizado israelense, um dos maiores pensadores da inteligência judaica, a ponto de falar e escrever em hebraico e ídiche, resgatou uma parábola popular em seu livro Histórias do Rabi (Perspectiva).
Ela nos diz muito sobre esta virada de ano, em que nos detemos numa listagem de nossas realizações em 2025 e intenções para 2026, e nos sentimos frustrados pelas iniciativas inacabadas, deixadas pela metade.
Certa vez, o Rabi Eisik de Cracóvia recebeu um sonho insistente. Uma voz poderosa e tonitruante o orientava a viajar a Viena, pois sob a ponte que levava ao palácio haveria um tesouro secreto, destinado ao seu usufruto. O sonho repetiu-se por três noites consecutivas. Eisik, pobre e idoso, decidiu seguir o chamado. Vendeu o pouco que tinha e partiu para atravessar a longa estrada.
Ao chegar a Viena, topou com a ponte cercada de guardas. Passou horas rondando, sem coragem de cavar. Quando finalmente manuseou a pá e revolveu a terra com sofreguidão, seus movimentos indiscretos despertaram suspeita e alarido. Um dos soldados se aproximou:
- O que o velho caça aqui? Eisik, tomado pela sinceridade de quem foi pego em flagrante, entregou-se:
- Tive um sonho. Sonhei que um tesouro estava enterrado no subterrâneo desta ponte. O soldado caiu na gargalhada: - Que inútil! Se eu acreditasse em sonhos, teria me deslocado a Cracóvia há semanas! Outro dia, sonhei que existia um tesouro escondido na casa de um pobre judeu de nome Eisik, debaixo de seu fogão. Imagine só! Eu indo a Cracóvia para quebrar o fogão de um desconhecido, por causa de uma fantasia.
Eisik, ao ouvir seu próprio nome, entendeu tudo. Agradeceu, voltou para sua cidade, levantou o solo da cozinha de sua residência e localizou a fortuna. O que Buber expõe na narrativa é que a verdadeira revelação acontece quando reconhecemos o tesouro que permaneceu presente e incógnito onde vivemos.
É desenterrar a si mesmo da necessidade de ser visto e amado pelos demais, começando pelo autocuidado. É privilegiar a família e os momentos raros e efêmeros que nos são concedidos junto a ela.
O que ansiamos na distância está, paradoxalmente, no nosso interior e no nosso lar. Empreendemos travessias, suportamos privações, descrenças, humilhações para enxergar e praticar o óbvio. A tampa de vidro de um fogão também é um espelho. A grandeza sempre vem disfarçada de simplicidade.
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