sábado, 15 de fevereiro de 2020



15 DE FEVEREIRO DE 2020
DIANA CORSO

Preciosa

"Tinha quinze anos e não era bonita. Mas, por dentro da magreza, a vastidão quase majestosa em que se movia, como dentro de uma meditação. E dentro da nebulosidade algo precioso."

Essa personagem de um conto da Clarice Lispector, a cada amanhecer percorria a quadra até o ponto do ônibus que a levaria à escola. No veículo, temia que os trabalhadores, mesmo adormecidos, "lhe dissessem alguma coisa, que a olhassem muito". Por via das dúvidas, "fazia mais sombra do que existia".

No fim da infância de uma menina, os outros começam a ver algo que ela ainda não reconhece e detesta que mencionem. Como a flor acontece à planta sem olhos, os seios brotam, o corpo se esculpe, mas ela é cega às evidências do espelho. Leva tempo até incorporar o potencial erótico das modificações corporais pubertárias, mesmo que tenham chegado bem antes. Aliás, cada dia encontramos mais garotas que partilham seios e bonecas, a natureza deu de ficar apressada, mas a mente demora para acompanhar o corpo. Meninas são preciosas.

Certo amanhecer friorento, o dia demorou a se espreguiçar. Nossa personagem fazia seu percurso solitário no vazio de uma branca nebulosidade. Coração espantado, viu dois rapazes em sentido contrário. Envergonhada do próprio medo, descartou a possibilidade de recuar ou correr, apostou na invisibilidade. "Rígida, catequista, sem alterar a lentidão com que avançava, ela avançava." Porém, eles a viram e "quatro mãos a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa que poderia ter feito no mundo dos movimentos: ficou paralisada". Eles saíram correndo, mas ela seguiu estátua. Retomou os movimentos minimalista, reaprendendo a andar. Passos quebrados, privada do garbo discreto da sua marcha, virou ninguém, "mais larva se tornou".

Infelizmente, na clínica de qualquer profissional da escuta, é raro uma mulher sem história de constrangimento, perigo ou abuso a contar. São traumas inaugurais, dos quais não provém nenhuma potência da sexualidade feminina. Possuir partes do corpo desejáveis não nos faz mulheres, mas há quem defenda os olhares lascivos e palavras obscenas como produtoras de um despertar. Nosso corpo não é uma lata, que aberta à força revelaria encantos.

Rapinar alguém como objeto sexual expulsa o humano do interior da pele. Um corpo se faz erótico somente através do desejo, ativamente. Os atos, os gestos, só vêm depois da fantasia. Não importa o que a imaginação antecipe, ela pode até providenciar cenas de passividade, a direção de cena será sempre de um sujeito.

Objeto é ninguém. Por isso, a reação ao abuso é de paralisia. É como se um vazio soprasse no pensamento. A vergonha, o pânico, que chegam depois, são como uma devolução do protagonismo sequestrado. Ainda bem que, cada vez mais, jovens feministas se preparam (e nos despertam a todas) para ser intolerantes ao assédio. Com Clarice, elas sabem-se preciosas, mas sem precisar fazer mais sombra do que existir.

*O colunista David Coimbra está em férias e retorna no dia 18/2

dianamcorso@gmail.com - DIANA CORSO - INTERINA

Nenhum comentário: