terça-feira, 30 de abril de 2019



30 DE ABRIL DE 2019
DAVID COIMBRA

Por que os professores de História são de esquerda

Por que os professores de História são de esquerda? Debatíamos a respeito ontem, no Timeline Gaúcha. É fato que a maioria dos professores de História é de esquerda, há até pesquisa que comprove, mas ninguém responde à pergunta. Então, repito-a:

Por que os professores de História são de esquerda?

É uma questão importante. Porque, afinal, quando as pessoas discutem política, não raro um debatedor afronta o outro:

- Vá estudar História!

Quem diz isso afirma que aquele estuda História sabe do que fala. Bem, os professores de História estudam História. Logo, eles devem saber do que falam. Assim, faço a pergunta pela terceira vez, agora com um adendo:

Se os professores de História entendem do que falam, por que eles são de esquerda?

Respondo: porque quem se interessa por História sabe que a trajetória das sociedades humanas se fundamenta na exploração do homem pelo homem. Mais até: o sistema escravagista, descarado ou disfarçado, sempre foi a base da economia mundial.

Não acredita? Olhe para a História: a escravidão servia como o cimento das sociedades antigas. Em geral, os escravos eram submetidos em guerras de conquista ou reduzidos a esse estado por causa de dívidas, mas houve casos de uma classe ser dominada por outra da mesma origem étnica, como os hilotas, que eram oprimidos pelos esparciatas na Lacônia.

Exemplo clássico de povos inteiros sujeitos à escravidão deu-se com os hebreus, duas vezes tornados servos. Da primeira não foi por guerra: os hebreus mudaram-se espontaneamente para o Egito, fugindo de uma carestia. Bem mais tarde é que um novo faraó, Ramsés II, decidiu impor certos trabalhos a eles. Da segunda, aí, sim, Nabucodonosor conquistou as tribos de Israel e levou o povo todo para a Babilônia. No caminho, eles sentaram nas pedras à beira dos rios e choraram.

Os escravos fizeram a grandeza de mil anos de Roma, até que o cristianismo os emancipou. Quer dizer: emancipou mais ou menos, porque, na Idade Média, o sistema feudal prendeu o homem à terra. O camponês agora não tinha um dono, tinha um suserano. Que, ao fim e ao cabo, era a mesma coisa.

O sistema de servidão mais duro da Europa talvez tenha sido o da Rússia, só abolido no século 19. Mas poucos povos sofreram tanto quanto os africanos, que por 400 anos foram caçados como bichos e, como bichos, acabaram sendo levados através do oceano para as Américas, onde trabalhariam feito bichos.

O crime cometido contra os africanos foi o pior de todos, porque a justificativa para a sua submissão não era a derrota bélica, nem algum crime cometido - era a cor da pele. Ou seja: os negros eram considerados menos humanos, o que avalizava moralmente a escravidão. Terrível.

Depois que a escravidão e a servidão terminaram, os proletários os substituíram no começo da Revolução Industrial. Homens, mulheres e crianças trabalhavam até 16 horas por dia, sem direito a férias ou fim de semana, em troca de salários de fome. Isso não poderia durar muito tempo. Os trabalhadores começaram a se revoltar. Mas o capitalismo tem uma qualidade darwiniana: ele vai se adaptando às novas realidades. 

Então, antes da Segunda Guerra Mundial, o campeão do capitalismo, a Inglaterra, mantinha-se forte graças ao seu império, onde o sol jamais se punha. Depois, o capital seguiu procurando mão de obra barata, seja lá em que canto do planeta estivesse. Hoje, a energia do capitalismo mundial vem dos chineses, que ganham pouco e trabalham muito. Empresas de toda parte, inclusive do Brasil, transferem-se para a China, atraídas pelos baixos salários que lá são pagos. Uma versão suave da escravidão.

Os professores de História, vendo isso, só podem ser de esquerda. Mas? mas antes que você me chame de esquerdopata, comunista, socialista e petista, antes que você me mande para Cuba ou para a Venezuela, antes de você se irritar, espere um pouco. Ainda tenho ponderações a fazer. Amanhã.

DAVID COIMBRA

30 DE ABRIL DE 2019
EDITORIAL

FALTOU A AUTOCRÍTICA


Na entrevista, o ex-presidente fornece combustível para os movimentos anti-Lula que estavam esmaecidos e, agora, reencontram seu velho alvo em plena forma mental e verbal
Na entrevista concedida aos jornais Folha de S. Paulo e El País, o ex- presidente da República se mostra o mesmo Luiz Inácio Lula da Silva de sempre, bem falante e apaixonado por política. Também fica claro que, pelo menos em manifestações públicas, a prisão não lhe ensinou novas lições. 

Lula segue em seu papel de vítima e ignora a dimensão da roubalheira que tomou conta do país sob seu governo, do qual a Petrobras foi o butim mais vistoso. O ex-presidente perdeu oportunidade de fazer no mínimo uma autocrítica em relação a seus próprios malfeitos e aos de seu partido, como defendem há algum tempo inclusive alguns de seus seguidores ou correligionários.

Até mesmo no aspecto referente à união das oposições, porém, fica evidente que o ex-presidente segue na batida de que tudo é possível, contanto que o PT não abra mão de ditar as regras. O máximo que se permite admitir é um eventual deslize ético por usar um sítio no qual empreiteiras faziam mimos a ele e à esposa, que viria a falecer posteriormente. É pouco para a dimensão de seus erros. O ex- presidente já foi condenado pelo caso em primeira instância, por corrupção e lavagem de dinheiro. Além disso, foi sentenciado pelas mesmas razões no caso do triplex de Guarujá, pelo qual se encontra preso desde abril de 2018. A decisão acaba de ser mantida pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Ao longo da entrevista, o ex-mandatário brasileiro se mostra obcecado com seu papel na História, o que tem alguma coerência para quem, de uma trajetória política marcada pela superação, chegou a registrar índices elevados de popularidade, que não soube preservar. Depois de sua condenação ter sido reiterada por um tribunal superior, é cada vez mais evidente que nenhum julgador perde o sono por ter mandado Lula para a cadeia, como ele chegou a insinuar. Pelo contrário, as evidências e penas se acumulam e, mesmo que venha a ter a prisão relaxada, o ex-presidente seguirá respondendo a processos que poderão devolvê-lo à prisão.

Ao fim e ao cabo, as declarações deixam evidente o alto espírito de Lula depois de tantas tragédias, como a morte de um irmão e um neto durante o período no qual se encontra na prisão. Ao mesmo tempo, na entrevista, o ex-presidente fornece combustível para todos os movimentos anti-Lula que estavam um tanto esmaecidos e, agora, reencontram seu velho alvo em plena forma mental e verbal.


30 DE ABRIL DE 2019
INDICADORES

Aumente seu mundo


Certa vez, Henry Ford disse que pensar é o trabalho mais árduo que existe, e talvez seja esse o provável motivo porque tão poucos se dispõem a fazê-lo. Imagine o que ele diria se vivesse nos dias de hoje, em que é possível viver um estilo de vida tão digital que nem sequer necessitamos pensar. Na vida moderna, ninguém precisa mais colocar os neurônios em funcionamento para ter a ilusão de que está vivendo. Você sai de casa e não precisa pensar no caminho a fazer, o Waze faz isso e ainda te mostra onde o trânsito está melhor.

Para que se lembrar do aniversário dos amigos se o Facebook te alerta na própria data? Escolher música é uma perda de tempo, basta colocar uma playlist do Spotify que seu gosto musical está lá, e com a vantagem de que quanto mais escuta, mais o algorítimo aprende o que você gosta de ouvir. Pensar na resposta de qualquer coisa já não é necessário, basta perguntar ao Google. Aprender uma língua nova também é um luxo. É só ter o aplicativo certo na próxima viagem. E a lista poderia encher páginas deste jornal.

O problema de tudo isso não é apenas estarmos delegando decisões demais para a tecnologia - e dando, também, informações demais de nós mesmos para corporações multibilionárias e não controláveis por ninguém. Pior do que isso, e de uma forma bem mais subterrânea e sutil, é que os mesmos algorítimos que nos definem também nos reduzem.

Os insights, aqueles momentos em que ligamos os pontos e chegamos a algo novo, na maioria das vezes, tendem a acontecer depois de intensa interação social, observação e reflexão - após investigação, aprendizagem e envolvimento com o mundo. A maioria dos grandes momentos de criatividade é apenas a conexão de pontos diferentes e nunca agrupados anteriormente.

Pessoas criativas são, antes de tudo, observadores hábeis em conectar informações de várias fontes de maneiras novas e surpreendentes. Empreendedores, pensadores e artistas usam suas próprias experiências e aspirações como um ponto de partida para criar o novo. Portanto, quanto mais referências e vivências, maior a chance de aumentar os insights e a inovação. Quem entende essa habilidade muda sua perspectiva em qualquer situação, ambiente ou comunidade. Vira um profissional mais ágil, rápido, múltiplo e desejado.

Segundo o americano Bruce Nussbaum, uma das maiores autoridades mundiais em inovação, design e inteligência criativa, nós construímos um quadro para um determinado cenário aplicando significado e compreensão para o que vemos. Esta é uma ferramenta para a inovação, porque ao compreender como enquadramos algo, também podemos colocar essa narrativa em uma nova moldura - mudando, assim, a forma como vemos e interpretamos aquilo. Em resumo, é simples: quando seu mundo fica menor, sua criatividade fica menor.

FÁBIO BERNARDI | SÓCIO-DIRETOR DE CRIAÇÃO DA MORYA


30 DE ABRIL DE 2019
POLÍTICA

Ministros preparam fim do monopólio na área de gás


O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) será o epicentro do processo de derrubada do preço do gás anunciado pelos ministros da Economia, Paulo Guedes, e de Minas e Energia, Bento Albuquerque. Diante de resistências internas da Petrobras, caberá ao órgão de defesa da concorrência abrir negociação com a estatal para a venda de ativos ou a liberação de acesso à infraestrutura de transporte do combustível.

A ação do Cade é parte de movimento organizado em conjunto por setores do governo para tentar quebrar o monopólio da Petrobras e trazer competição ao setor, com o objetivo de promover um "choque de energia barata", nas palavras de Guedes. Um dos mentores da proposta, o economista Carlos Langoni, diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getulio Vargas, estima que, ao incentivar a competição, é possível reduzir pela metade o preço do gás natural, com impactos positivos na indústria e na conta de luz:

- A Petrobras praticamente controla a totalidade da oferta e continua controlando a infraestrutura logística, principalmente os gasodutos. Do lado da distribuição, há monopólios também nos Estados.

A ideia é que, em até dois meses, o Cade e a Petrobras apresentem um plano para a venda de ativos no segmento. Em troca, a empresa se livra de processos que apuram práticas anticompetitivas e discriminação na venda de gás. As conversas iniciais já ocorreram e, a partir de agora, as duas partes devem evoluir para reuniões formais.

O pacote em gestação inclui ainda outros três pilares: revisão do modelo tributário, incentivo ao uso do gás para geração de energia e novo marco jurídico para a distribuição, para apoiar consumidores livres.



30 DE ABRIL DE 2019
CARPINEJAR

Fotos inevitáveis

Vivemos em sociedade, isso significa que há um repertório absolutamente comum de lembranças. O que ninguém pode escapar é de participar de determinadas fotografias que remontam marcos individuais numa memória coletiva. Indicam os rituais de passagem, organizam a nossa linha do tempo, atestam que somos normais.

Todos as têm em seu álbum de retratos ou em seus arquivos digitais. Por mais que sejam cafonas, são também inevitáveis. Não há como declinar do clique e se ausentar do papel de protagonista. Mesmo os tímidos, mesmo os arredios, mesmo os retraídos acabam enquadrados na cadeia evolutiva pelos parentes.

As cenas estarão lá guardadas em algum lugar da casa ainda que se esqueça de sua existência. Constituem um altar da evocação, de fácil identificação, espécie de cartões-postais do turismo familiar.

1 - Pelado na banheira quando era bebê ou tomando banho de mangueira ou deitado numa piscina de plástico.

2 - Sem os dentes da frente na infância, sorrindo.

3 - Dormindo, pequeno, com o cachorro.

4 - Na praça ou na praia, brincando de balde. Com as mãos imundas de terra.

5 - Na escola, naquela imagem posada de anuário, com uniforme.

6 - Mostrando a língua ou forçando uma mirada vesga.

7 - Comendo frutas no pé de uma árvore.

8 - Chorando de medo no colo do Papai Noel em um shopping ou com um tio fantasiado.

9 - Soprando as velas de aniversário de olhos fechados e bochechas cheias de ar.

10 - No capô do carro novo dos pais, recém tirado da concessionária.

11 - Inclinado na primeira bicicleta, quase caindo, com o pé de apoio mal tocando o chão.

12 - Da primeira excursão com a turma, com uma montanha de gente, em frente a um ônibus.

13 - Selfie no espelho do elevador.

14 - Dentro do mar. Para mostrar que não tem medo de molhar o celular.

15 - Já com olhar bêbado e bobo num churrasco, achando graça de tudo.

16 - De vestido ou smoking na festa de debutante de alguém.

17 - Fantasiado no Carnaval.

18 - Com o olhar escondido atrás de um drinque colorido e enfeitado.

19 - Trocando de cálices no casamento, de braços trocados e embaralhados e fazendo biquinho de beijo.

20 - Cortando o bolo do casamento.

21 - Beijando a barriga da gestante, no caso do pai. Ou nua, de lado, na sombra, no caso da mãe.

São clichês de nossa evolução, lugares-comuns de nosso crescimento, cristalizando etapas vencidas de nossa história.

Incrivelmente, representam as imagens que mais nos envergonham quando somos ainda jovens e as que mais despertam saudade na velhice.

CARPINEJAR

segunda-feira, 29 de abril de 2019


29 DE ABRIL DE 2019
CLÁUDIA LAITANO

Obscuro objeto do desejo

O celular é a nova chupeta: mesmo os pais mais disciplinados eventualmente cedem à realpolitik da satisfação imediata em troca de algumas horas de sono ou de um almoço mais tranquilo. Alguns se sentem culpados, outros nem sequer se ocupam do assunto. O fato é que, com ou sem intervenção dos pais e do Papai Noel, um dia o bico será substituído por outros objetos de desejo. Celulares e tablets, ao contrário, vão ficando cada vez mais atraentes conforme a criança vai crescendo. Quem tem um adolescente em casa sabe o que é tomar conta de um dependente físico digital - e são grandes as chances de que esse vício seja compartilhado, em alguma medida, por toda a família.

Na semana passada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu dar um cutuco nos pais exageradamente desencanados com relação aos hábitos digitais dos filhos. Segundo as novas recomendações da OMS, bebês de até um ano não devem ter qualquer tipo de acesso a telas eletrônicas. Dos dois aos quatro anos, a indicação é de no máximo uma hora por dia de TV, games ou celulares.

O bem-estar das crianças sempre depende do bom julgamento dos pais. Cabe a eles administrar a vida digital dos filhos com a mesma disposição de acertar que demonstram ao escolher sua escola ou preparar sua comida. Já os adultos não têm a quem apelar a não ser à própria força de vontade, que por sua vez não parece estar sendo suficiente para quem deseja mudar de hábitos. Desde o ano passado, os sistemas IOS e Android contam com marcadores que ajudam os usuários a visualizar o tempo que estão gastando ao celular - o que não deixa de ser uma forma de os fabricantes admitirem que o problema do uso exagerado existe e vem afetando a vida de boa parte dos consumidores. 

Também não param de chegar às livrarias diferentes abordagens sobre o tema da dependência, seja propondo um detox radical (Digital Minimalism: Choosing a Focused Life in a Noisy World, de Cal Newport), seja refletindo sobre o sentido filosófico-existencial de doar o próprio tempo a experiências digitais nem sempre satisfatórias (How to Do Nothing: Resisting the Attention Economy, de Jenny Odell).

A mesma tecnologia que facilita nossa vida em tantos aspectos opera para que seja cada vez mais difícil viver desconectado. E isso não acontece por acaso. Nossa atenção e nosso tempo diante das telas valem ouro na economia digital. Quanto mais imersos no ambiente de satisfação ilimitada do smartphone, mais dinheiro alguém está ganhando às custas dos nossos cliques - diretamente, quando adquirimos um produto, ou indiretamente, por meio da publicidade e da comercialização dos nossos dados. Não existe "like" de graça - assim como não há vida sobressalente depois que gastarmos esta daqui.

CLÁUDIA LAITANO


29 DE ABRIL DE 2019
DAVID COIMBRA

Grêmio teve uma derrota maravilhosa

O Grêmio teve uma derrota maravilhosa contra o Santos, na manhã deste domingo. Não estou sendo irônico. No futebol, o resultado é o que existe de mais importante, mas não é só o que existe de importante. No caso do 1 a 2 sofrido diante do Santos, na Arena, o Grêmio mostrou qualidades que podem elevá-lo aos píncaros da América do Sul neste ano.

Mas, para chegar ao topo do Aconcágua, o Grêmio precisará mudar um pouco. A começar pelo fim: pelo ataque. Quando Renato mudou o time, no segundo tempo, ficou claro que, com jogadores mais objetivos, o Grêmio se torna quase irresistível. Em 35 minutos, Tardelli deu lógica ao meio de campo e agudeza ao ataque. Nos camarotes, Tite deve ter anotado seu nome no caderninho de nomes da Seleção Brasileira.

Outra boa nova: Luan jogou com desenvoltura, esteve perto de marcar gol e se entendeu com Tardelli como se eles tivessem combinado isso enquanto estavam sentados no banco de reservas.

Para arrematar o conjunto de méritos que o time apresentou, surgiu, enfim, um centroavante na Arena: André fez sua melhor partida desde que chegou ao Rio Grande do Sul. Faltou apenas o gol, mas há dias enfeitiçados em que o gol não sai. Um time ataca, chuta, a bola bate no poste, o goleiro pega, o juiz não marca pênalti ou anula um lance que nunca anularia. Aí o adversário vai lá e faz um e faz dois e tudo se torna turvo, ermo e sombrio. Foi a história do jogo de ontem. Mas não será a história do ano. Pode acreditar.

A entrevista de Lula

Dei-me o trabalho de ler a alentada entrevista que Lula concedeu na cadeia. É óbvio que quem odeia Lula vai criticar o que ele disse e quem ama vai elogiar. Não me enquadro em nenhuma das duas categorias. Consigo ver méritos e deméritos em Lula. Ainda escreverei mais a respeito, Lula é ótimo personagem, mas, por ora, quero me concentrar na entrevista.

Em primeiro lugar, fica cristalino que a cadeia não mudou Lula em nada. Nem para melhor, nem para pior. Ele está exatamente igual. Isso pode ser bom, porque demonstra que o revés não o abateu. Mas pode ser ruim, por demonstrar que o revés não serviu de aprendizado.

Quando os repórteres perguntam se Lula reconhece ter cometido algum erro em sua trajetória, a resposta dele tem o poder de deixar o leitor atônito. Primeiro, quanto ao caso do sítio reformado pelas empreiteiras, ele declara o seguinte:

"Eu cometi o erro de ter ido no sítio. Então, se eu cometi o erro de ir num sítio em que alguém pediu e a Odebrecht reformou, vamos discutir a questão ética. Aí é outra questão".

Explicando: havia um sítio em que Lula sempre ia. Sempre. Este sítio foi reformado, de graça, por três empreiteiras. As obras saíram mais de R$ 1 milhão. E Lula acha que isso não é nada mais do que uma "questão ética".

A segunda autocrítica que ele faz é ainda mais espantosa. A seguinte: "Eu, por exemplo, tive um erro grave. Eu poderia ter feito a regulamentação dos meios de comunicação".

Sério! Lula pensa que o erro dele foi não censurar a imprensa! Lula acerta, na entrevista, na crítica que tece a Bolsonaro. Neste caso, sua análise é percuciente: "Não sei como você é deputado 27 anos e diz que não gosta de política. Como você faz um filho vereador, outro deputado federal, outro senador, e você não gosta de política? Então, ele vai ter que ter muita capacidade de articulação, muita vontade, vai ter que gostar muito de política para poder dar certo. Porque a chance de ele dar certo é o Brasil dar certo. O povo tem paciência, mas não tem toda a paciência do mundo".
Perfeito. Preciso. De política, não há dúvida, Lula entende.
DAVID COIMBRA


29 DE ABRIL DE 2019
OPINIÃO DA RBS

DISPERSÃO DE FOCO NO PLANALTO

É nos problemas reais do Brasil que o presidente deveria se esforçar para colocar toda a sua atenção e perseguir soluções

Em tese, a ninguém deveria surpreender o grau de intervencionismo do presidente Jair Bolsonaro em questões de costumes aparentemente menores e corriqueiras, como um comercial do Banco do Brasil que apresenta a diversidade como um trunfo para modernizar sua imagem e atrair mais jovens para a instituição. O presidente nunca escondeu que é nessa agenda de costumes que ele se sente mais à vontade - seja nas manifestações abertamente preconceituosas durante seu mandato como deputado ou mesmo nas críticas pontuais ao longo da campanha, quando se dedicou a atacar até mesmo uma questão da prova do Enem.

Bolsonaro deve muito de sua eleição a essa agenda. Graças aos ataques ao chamado politicamente correto, ele se destacou na multidão de candidatos e galvanizou um eleitorado ávido pelo representante de uma corrente de pensamento mais conservador. Para mobilizar esse eleitorado, as redes sociais foram o meio ideal. Afinal, elas dispensam filtros e geram a criação de bolhas de opinião nas quais todos pensam e se expressam virtualmente da mesma forma, em um crescendo de extremos e sectarismo que favorece a eleição de candidatos de postura mais radical ou que desafiam o status quo.

Eleito democraticamente com essa plataforma, agora na Presidência Bolsonaro tem disparado contra alvos que pouco ou nada interferem na realidade dos mais de 200 milhões de brasileiros. Ao manter no Palácio do Planalto a postura do deputado ou do candidato, o presidente carrega para o mais alto cargo da República uma retórica que deveria ter sido arquivada com a abertura das urnas. É certo que uma parte dos seus eleitores vibra com a tese do confronto permanente emanada do guru da família Bolsonaro que vive nos Estados Unidos, mas ainda está por ser identificado no que tal estratégia contribui para o desenvolvimento ou a união de um país virtualmente estagnado e ainda fraturado pelas urnas.

Na Câmara, o deputado Bolsonaro era visto como um representante do baixo clero ou um parlamentar de comportamento exótico. Suas atitudes e declarações, por mais polêmicas que fossem, tinham repercussão limitada. Na Presidência, qualquer comentário ou iniciativa do chefe de governo assume uma proporção de Estado que pode afetar desde a relação com potências estrangeiras até votações no Congresso cruciais para o futuro da administração.

É fato que o presidente se mostra pouco afeito a temas econômicos e políticos, nos quais comete uma série de tropeços e produz desgastes desnecessários dentro e fora do governo. No entanto, o entorno do presidente deveria atentar para as lições históricas, como a legada por Jânio Quadros, que também se elegeu com base em temas de costume e no combate à corrupção, mas acabou lembrado em seu curto mandato apenas pelas esquisitices, como condenar biquínis e rinhas de galo.

O menu de problemas reais do Brasil é enorme e urgente. É nele que o presidente deveria se esforçar para colocar toda a sua atenção e perseguir um mínimo de unidade nacional na busca de soluções. Do combate ao crime organizado ao desemprego, passando pelo desequilíbrio fiscal e a baixa qualidade da educação, Bolsonaro tem muitos leões por dia para matar. Deveria se dispensar, portanto, de criar outras frentes de crise e voltar o foco para o que realmente pode fazer diferença na vida de todos os cidadãos, eleitores seus ou não.


29 DE ABRIL DE 2019
EM DIA

QUANDO O GENERAL SERVE O CAFÉ


O mundo corporativo tem experimentado o modelo de "empresas sem chefes". A Patagônia, marca de roupas e equipamentos para escalada, permite, desde a década de 1970, que os funcionários parem o que estiverem fazendo para irem surfar. Na Netflix, os funcionários tiram férias quando bem entendem. Mas o que acontece quando essa cultura de "empresas sem chefes" é a base do genoma de um país inteiro?

Enquanto você lê este texto, estou em Israel como curador de uma semana de imersões oferecidas por um cliente nosso a sua própria rede de clientes e parceiros comerciais. Estamos sendo enriquecidos com experiências em startups, teremos aula na Universidade Hebraica de Jerusalém e, inclusive, conheceremos uma unidade do exército, onde existe uma visão única acerca do conceito de hierarquia.

No exército israelense, um "superior hierárquico" respira o propósito de identificar talentos e empoderar para a tomada de decisões. Dan Senor e Saul Singer contam, no livro Nação Empreendedora, a história de um comandante do exército israelense que, na Guerra do Líbano, em 2006, precisava resgatar de helicóptero um colega no local para onde, ferido, este conseguira escapar. Era uma região cercada por arbustos, não havia como pousar, nem mesmo em solo mais afastado, pelo risco de ser abatido. A solução encontrada pelo comandante foi utilizar o rotor de cauda do helicóptero como um cortador de grama improvisado - desbastando um local para o pouso. E o comandante era um jovem de apenas 20 anos de idade.

Trata-se de consequência da criatividade estimulada em um ambiente em que você dificilmente vê alguém batendo continência. Se um general estiver mais perto da jarra de café, é ele quem serve o soldado. Não surpreende que empresas como Wix e Waze tenham sido criadas dentro deste ecossistema, contribuindo para que Israel, esta terra longínqua cada vez mais próxima do Brasil, se tornasse o país com o maior investimento de capital de risco e o maior número de startups per capita no mundo.

O exemplo do exército israelense, bem como os exemplos que deram certo no mundo corporativo, nos ensinam que, mais do que conquistar liberdade, é preciso nos comprometermos com a responsabilidade necessária para continuar merecendo essa liberdade. Algo que nem sempre estamos dispostos a fazer.

Sócio da Grinberg Consulting cassio@grinbergconsulting.com.br - CASSIO GRINBERG


29 DE ABRIL DE 2019
+ ECONOMIA

Como afugentar o cliente do futuro

Um dos principais temas debatidos na mais recente edição do Ciab Febraban, congresso de tecnologia do setor financeiro, foi como os bancos tradicionais deveriam se adaptar para cativar os clientes jovens. Na busca por respostas, a consultoria espanhola Everis apresentou no evento um estudo de comportamento sobre os millennials brasileiros. Embora exista discordância sobre a faixa etária desse recorte da população, seria um grupo que hoje no país é superior a 50 milhões de pessoas. A grande preocupação está na constatação de que um terço desse contingente revelou a pretensão de abandonar os bancos em um período de cinco anos. Metade acredita que os serviços financeiros que precisam serão supridos por fintechs ou novas soluções que chegarão no mercado.

Como são estes jovens? Multiculturais, ansiosos, filhos da globalização e defensores da diversidade, explicou o diretor da Everis, José Ignácio Núñes. E qual o significado de uma compra? Vai além de uma mera aquisição de algo. Deve conter valores éticos que querem passar para o seu círculo, não apenas em redes sociais. Para eles, mostra a pesquisa, as marcas devem trazer consigo discursos com posicionamento claro sobre assuntos como sustentabilidade, racismo e homofobia.

A forma como os bancos devem se portar para conquistar esses novos clientes, de acordo com a pesquisa apresentada no evento da própria Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), colide frontalmente com a iniciativa do presidente Jair Bolsonaro de vetar uma simples propaganda do Banco do Brasil (BB) que tentava exatamente atrair esse público, usando personagens que expressam a própria diversidade cultural, sexual e de comportamento dos brasileiros.

Além de preconceituosa, a atitude é uma ingerência que fere a Lei das Estatais por interferir na política comercial do banco. Se a intenção era de espantar o cliente do futuro, foi uma boa estratégia. É como se uma fatia importante do mercado fosse dispensada. Por birra. Se os millennials são multiculturais e defensores da diversidade, talvez o BB, ao menos no governo Bolsonaro, não seja a melhor alternativa. A concorrência agradece.

Doce expansão

Criada em 1978 e tradicional em Gramado, a loja de lanches Casa da Velha Bruxa, operada pela Prawer Chocolates, passa a ser franchising. A primeira franquia abriu na Estação Campos de Canella, na cidade vizinha. Ainda em 2019, a marca deve inaugurar pontos em Porto Alegre, Balneário Camboriú (SC) e Curitiba. O investimento médio para quem deseja ser franqueado da marca varia de R$ 600 mil a R$ 700 mil.

Uma notícia boa e outra ruim

A atividade econômica no Estado, medida pelo IBC-Br, recuou 0,8% no trimestre encerrado em fevereiro, mostrou o Banco Central semana passada, na divulgação do Boletim Regional. A comparação é com o intervalo imediatamente anterior de três meses, de setembro a novembro, período que registrou alta (1,5%). A principal causa foi o desempenho negativo da indústria. No intervalo de 12 meses, porém, a economia gaúcha mostrou aceleração e teve alta de 2,6% até fevereiro.

Com cerca de R$ 5 bilhões sob custódia, a Messem Investimentos, escritório vinculado à XP, inaugurou novo espaço em Caxias do Sul, onde nasceu. Com a ampliação, passa a ter capacidade para abrigar 60 profissionais, local para eventos com até cem pessoas e consegue oferecer maior conforto aos clientes. A intenção é chegar à marca de R$ 20 bilhões nos próximos dois anos. A Messem também tem unidades em Porto Alegre e São Paulo.

RESPOSTAS CAPITAIS

"ARGENTINA É FILME QUE SE VÊ DE NOVO"

Marcos Azambuja
Diplomata e conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais

Ex-embaixador na Argentina, o diplomata Marcos Azambuja analisa a situação política e econômica do país vizinho e se mostra decepcionado com o governo de Mauricio Macri, que se elegeu com discurso liberal e, há poucos dias, recorreu até a congelamento de preços. Ex-secretário-geral do Itamaraty, também avalia a nova política externa brasileira sob o governo de Jair Bolsonaro.

O governo Macri, que seria de viés liberal, é uma decepção?

É. Prometeu mais do que poderia entregar. Criou expectativas e não cumpriu. A oposição a ele é grande e tem muita influência da ex-presidente Cristina Kirchner e de outros líderes peronistas. A inflação está em níveis intoleráveis. A desvalorização do peso é inaceitável. A intervenção do FMI reacende os sentimentos do passado em que o fundo determinava, com insensibilidade, as políticas que o país deveria seguir. Falta pouco tempo para as eleições. Cristina pode se apresentar. Macri está esvaziado do que tinha de mais importante, a esperança de que, com ele, a Argentina voltasse a crescer.

Onde ele errou?

A Argentina continua a ter grande dificuldade de ser governada por qualquer grupo político que não seja associado ao peronismo. Em suas várias vertentes, o peronismo ainda é o caminho que leva à governabilidade. Não ao sucesso, não ao crescimento. Ele subestimou os problemas que iria encontrar. A economia está fragilizada e ele não conseguiu criar uma corrente liberal com capacidade de convencer os argentinos de que era o melhor caminho. Vive mais uma vez a mesma situação. FMI, inflação alta, baixo crescimento, desconfiança da sociedade com a política econômica e desgaste da presidência. A Argentina é um filme que se vê de novo.

Vê possibilidade de Cristina Kirchner voltar ao poder?

O que mais sustenta o Macri é o medo da volta da Cristina. Parece um paradoxo. Há temor de que volte o populismo, a corrupção, o nacionalismo exaltado do ciclo do kirchnerismo na segunda fase. Ela tem chances reais. Se continuar assim, vai crescendo. De novo a Argentina na mão do FMI, aquele ressentimento contra as forças de fora, a população sindicalizada achando que é tratada com insensibilidade, aumento da pobreza e do desemprego.

O quanto é ruim para o Brasil?

O Brasil tem na Argentina um mercado importante, sobretudo para o que produzimos de industrializados. É o nosso melhor mercado. Não há cenário de infelicidade deles que não seja a diminuição de nossas exportações.

Como o senhor vê a nova política externa brasileira?

Prometi a mim mesmo dar um tempo. É razoável esperar que o governo da hora experimente, tente, acerte, erre. Mas estou preocupado. A política externa brasileira sempre teve duas características que admiro: previsibilidade e racionalidade. Não quer dizer que sempre esteja certa. Mas era algo que se podia ver como se desdobraria. Defesa da nossa integridade territorial, boa relação com vizinhos, aproximação com países de todas as naturezas, com EUA, China, Rússia. O Brasil tinha uma política que era razoável. Com pecados de um pouco de excesso de protagonismo e indulgência excessiva com governos como de Chávez e Maduro. Mas tenho medo de uma aproximação excessiva com Israel e EUA. Agora, há a visita do presidente à Polônia e à Hungria. Não são destinos naturais da diplomacia brasileira. Na democracia, há alternância no poder. Um governo como o da Dilma Rousseff, de centro esquerda, pode ser sucedido por um de centro direita. Não quero é que pendulo vá tão dramaticamente para um lado que pareça os mesmos erros, com o sinal trocado.

Considera que o Itamaraty está ideologizado demais?

Perdeu a tradição de comportamento racional e previsível. Estamos erráticos.

E a figura pessoal do chanceler Ernesto Araújo?

Ele tem um problema que não sei como superar. Se move por impulsos ideológicos, por inspiração de autores, forças, religiões ou filosofias que não são as que costumam nos conduzir. A nossa política externa era conduzida mais pelo bom senso. Menos ideologia e mais comportamento racional e previsível. Cada vez mais acredito em moderação e racionalidade. Mas as minhas convicções não estão na moda. Claro que temos de nos aproximar dos EUA e de Israel. É bom para eles e para nós. Mas não tanto.

CAIO CIGANA

sábado, 27 de abril de 2019


27 DE ABRIL DE 2019
LYA LUFT

Do tempo


Faz alguns anos, tive, num sonho, um vislumbre de uma escultura interminável de corpos humanos entrelaçados emergindo muito abaixo de mim e perdendo-se no infinito acima de minha cabeça. Talvez seja um dos significados da existência nossa: encadeamento e continuação. Como um novelo desenrolando-se incessantemente, todos nascendo uns dos outros, uns por cima dos outros, cada um estendendo as mãos para o alto um milímetro mais e mais e mais: somos novelo e fio ao mesmo tempo.

Meu gesto repete o de uma de minhas antepassadas; meu riso será o de algum descendente meu, que jamais conhecerei, o fio primeiro de minhas ideias nasce de outro pensamento milênios atrás, e continuará se desenrolando depois que eu tiver deixado de existir há séculos, num tempo que não flui como o imaginamos, esse tempo medido e calculado. Ele é pulsação, surpresa.

Às vezes, suspiramos pelo conforto que, vista de longe, parecia ser a vida quando tudo era mais limitado e certo: menos opções, menos possibilidade de erro. Temos de aprender a conviver com essas novas engrenagens de tanta surpresa e perplexidade, mas tanta maravilha. Temos de estar mais alertas do que décadas atrás, quando a vida era - ou hoje nos parece - tão mais simples: precisamos estar mais preparados, para que ela não nos dilacere. Temos de ser múltiplos, e incansáveis.

Que cansaço.

Pois a vida não anda para trás: o preço da liberdade são as escolhas com seu cortejo de esperança, entusiasmo, hesitação e angústia - para que se criem novos contextos e se realizem novas adaptações, que podem não ser estáveis. Pois as inovações, a corrida do tempo e as possibilidades aparentemente infinitas já nos puxam pela manga e nos convidam para outra ciranda de mil receitas: vamos ser inventivos, vamos ser produtivos e competentes, felizes a qualquer preço na companhia de todos os deuses e demônios nessa sarabanda. Fora dela, nos dizem, restam o tédio, a paralisia e a morte.

Será mesmo assim? Ou ainda existem, e podemos descobrir, lugares ou momentos de tranquilidade onde se realiza a verdadeira criatividade, onde podemos expandir a alma, onde podemos amar as pessoas, onde podemos contemplar a natureza, a arte, e os rostos amados, e construir alguma paz interior? Creio que sim.

Para que as emoções e inquietações positivas não entrem em coma antes que termine de definhar o corpo.

LYA LUFT

27 DE ABRIL DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Só lembro que foi bom


Guardo muitos livros em casa, uma pequena biblioteca de milhares. Metade ainda espera minha leitura e a outra metade já foi devorada, mas ainda assim a mantenho, já que acontece comigo algo desesperador: não lembro o que leio. Nada. Qual era o nome do personagem, qual a trama, como é que ela termina. Nada.

Há quem recite trechos de seus autores preferidos, quem reconheça passagens de obras lidas anos atrás e quem declame poemas alheios como se fossem seus. Não lembro nem meus próprios versos, o que dirá os versos dos outros. Amo os livros e tenho com eles uma relação doentia. Doença neurodegenerativa: o sentimento fica, a lembrança vaza.

Outro dia, observando as lombadas perfiladas nas prateleiras, encontrei Longamente, de Erik Orsenna, romance francês que recomendei para muitos amigos, inclusive para um jornalista que se encantou a ponto de entrevistar o escritor em Paris. Pois mal me recordo do livro. O personagem amava uma mulher casada, e mais não sei dizer.

Não há como esquecer Canção de Ninar, de Leïla Slimani. É um romance recente e impactante. Tirza, de Arnon Grunberg. Enclausurado, de Ian McEwan. São livros que ainda retenho, pois não faz tanto tempo que os li e trazem passagens que abalam e surpreendem, mas o critério "não-faz-tanto-tempo-que-os-li" não é confiável. Três dias atrás fechei um livro que li com prazer, mas não me pergunte do que se trata. Sumiu de dentro de mim.

É uma espécie de mal de Alzheimer restrito apenas aos livros. Vejo a foto da capa, tenho certeza de que passamos bons momentos juntos, mas não me vem nenhum registro da história. E aí me pergunto: vale a pena continuar com o hábito da leitura, se logo depois perderei esse investimento de tempo?

A boa notícia: vale. É preciso confiar em tudo o que se conecta com a nossa sensibilidade. A retenção não precisa ser formal, ninguém irá nos sabatinar sobre o enredo, o que importa é a consequência emocional da leitura, a interiorização das descobertas, as portas que se abriram dentro da gente e que nos transformaram, mesmo sem termos consciência disso. O poeta José Paulo Paes explica assim: "Cultura é tudo aquilo que a gente se lembra após ter esquecido o que leu. Revela-se no modo de falar, de sentar, de comer, de ler um texto, de olhar o mundo. 

É uma atitude que se aperfeiçoa no contato com a arte. Cultura não é aquilo que entra pelos olhos, é o que modifica seu olhar". Grande poeta, que faleceu em 1998. Li muitos poemas de José Paulo Paes e não recordo de nenhum. Mas certamente sua poesia me deu alguma percepção da vida que eu ainda não tinha, e isso me tornou melhor, maior e mais humana. Como acontece a cada bom livro que leio e que desgraçadamente esqueço.

MARTHA MEDEIROS


27 DE ABRIL DE 2019
CARPINEJAR

Meu antidepressivo

É natural emendar episódios da série em casa. Há quem nem dorme até assistir uma temporada inteira, de cabo a rabo. Dez capítulos de um fôlego só pulando apenas a abertura e parando unicamente para o pit stop do banheiro e da água.

Lembra uma possessão, a pessoa não consegue realizar outra coisa a não ser acabar aquilo naquela noite. Não pisca, não interage, um zumbi do vício. É capaz de tomar café ou energético para não sucumbir ao sono. Profissional mesmo das maratonas visuais.

Já fiz isso, é um prazer indescritível de solidão, a esposa não consegue acompanhar o percurso e fica assustada no dia seguinte com o meu rosto murcho e remelento de ressaca, de balada dentro de casa.

Apesar da facilidade de empilhar séries, a minha maior alegria é ainda o cinema, onde recarrego as minhas baterias e organizo as ideias. Sou rato das cadeiras vermelhas. E é uma felicidade que costumo inventar quando estou triste, quase como uma automedicação. Ao sentir desânimo no trabalho, eu bloqueio a agenda e me receito filme.

Não um filme, vários filmes em sequência. Vou na bilheteria e compro a sessão das 14h, das 16h, das 18h. É apenas eu e as histórias na tela. Apago o celular e tiro miniférias por algumas horas. Sumo do radar das preocupações. Ninguém me encontrará.

Troco de sala rapidamente, como se estivesse participando de júri de um festival. Numa exibição, trituro pipoca. Noutra, quebro balas nos dentes. Na terceira, já me tornei um espectador cult, que não gosta de barulho e pede silêncio.

Um filme entra no próximo, aleatoriamente. Roteiros se misturam. Atores e atrizes de diferentes matrizes dialogam em minha cabeça. Relaxo não pensando nas discordâncias de minha rotina, assumindo o papel de testemunha da beleza e da verdade alheias. Meus problemas desaparecem porque interrompo a cadeia obsessiva de reprisá-los.

Nada é mais terapêutico do que entrar no escuro de uma projeção no começo da tarde e sair de noite. Não perdi o dia, ganhei a minha vida de volta. Dá uma saudade danada da luz e de conversar com os outros.

CARPINEJAR

27 DE ABRIL DE 2019
PIANGERS

O que é o amor?


"É o que faz você sorrir quando você está cansado", respondeu uma criança de quatro anos. Crianças respondem de forma espontânea, não caem no lugar-comum adulto. Uma pessoa crescida, cheia de clichês, responderia que é um sentimento profundo que nos faz querer estar perto de outras pessoas. Mas é uma resposta pré-pronta. Crianças tentam explicar o mundo que veem elaborando respostas melhores, autênticas. "Quando alguém ama você a maneira como ela fala seu nome é diferente. Você sabe que seu nome está seguro na boca dela", disse uma, de sete anos. Você sabe que está seguro na boca dela.

"Amor é quando minha mãe faz café para o meu pai e bebe um golinho antes de lhe dar, pra saber se está realmente bom". "Amor é quando você diz a alguém que gosta da camisa dele, então ele a usa todos os dias". "Amor é quando seu cachorro lambe sua cara mesmo depois de você deixá-lo sozinho em casa o dia inteiro". "Amor é quando você beija o tempo todo. Então, quando você cansa de beijar, você ainda quer estar junto da pessoa para conversar mais. Minha mãe e meu pai são assim".

O amor nunca é bruto. O amor não agride. O amor é paciente, tem sempre mais cinco minutos. Toma cafés demorados. Aceita ligações. Tem tempo para papo furado. Dorme abraçado, agradecido. O amor não se deixa pra depois. "Você não deveria dizer "eu te amo" a menos que seja verdade. Mas se for, você deveria dizer o tempo todo. As pessoas esquecem". O amor se cultiva e quando está maduro se distribui. O amor é mais forte do que aquilo que é anti-amor. Ele opera em silêncio. Ele é contagioso. "Eu sei que minha irmã mais velha me ama porque ela me dá todas as roupas velhas dela e tem que sair para comprar roupas novas", disse uma menina de quatro anos. O amor é sem vergonha.

Há uma coisa que nós, adultos, sabemos mais do que as crianças. Que a vida não é para sempre. Que nossos corpos envelhecem. Que nossos filhos crescerão. Precisamos ser românticos. Acreditar que nossa vida, nossos minutos aqui são valiosos demais pra serem perdidos. Que a vida deve ser preenchida com amor. Que, talvez, seja o sentido de estarmos aqui. E que tudo o que precisamos saber já sabíamos, quando éramos crianças.

PIANGERS

27 DE ABRIL DE 2019
ANA CARDOSO

Você não importa tanto assim


Quantas vezes eu falei para as minhas filhas que elas são as pessoas mais lindas, fofas, inteligentes e capazes do mundo, nesta semana? Obviamente já perdi a conta. Somos essa geração que não tem vergonha de lamber a cria até que a adolescência estabeleça uma distância saudável entre criador e criatura. Esse excesso de elogios nem sempre é positivo, porque, verdade seja dita, nossos filhos podem ser tudo e mais um pouco para a gente, mas, para o mundo, são apenas um entre sete bilhões, poeira cósmica, diria o astrofísico Neil deGrasse Tyson.

Pessoas que crescem achando que são melhores do que os outros têm sérias dificuldades para se relacionar com colegas, professores, namorados, empregadores ou clientes. Da porta de casa para fora, serão essas relações que irão definir quem você é, o seu sucesso ou fracasso, a sua felicidade ou depressão. A mamãe repetir que te ama e que você é lindo não obriga sua coleguinha de natação a achar o mesmo. O professor a te achar genial. A menina bonita da festa a querer transar com você. Seus funcionários a curtirem suas fotos. O árbitro a dar sempre a vitória para o seu time.

No domingo passado, os jogadores do São Paulo, ao perderem o jogo para o Corinthians, nos últimos minutos da partida, ficaram tão chateados que não queriam participar da cerimônia de premiação. Foi preciso Raí, diretor executivo de futebol, esse sim digno de todos os bons predicados que lhes são atribuídos, levar os garotos mimados a encarar o fato de que não eram campeões, mas sim vice-campeões.

Mães, pais e demais familiares, parem de reservar o chuveiro para seu pimpolho na natação. Parem de reclamar das professoras nos grupos. De carregar a mochila do moleque para a escola. O mundo, com certeza, não vai ser tão servil a ele assim. Ele não importa, você não importa, eu não importo. Quem sabe, se tivermos essa consciência, possamos ser de fato legais e relevantes. E passar a importar um pouquinho. Não que isso importe.

ANA CARDOSO

27 DE ABRIL DE 2019
GALPÃO CRIOULO

Galpão de cara nova


O Galpão Crioulo traz novidade. A participação da artista Analise Severo, que apresentará o programa comigo a partir do mês de maio, durante o período da licença-maternidade da Shana Müller, que aguarda a chegada do seu segundo filho, o Francisco. Analise Severo também é cantora, e das boas, uma baita apresentadora, colega que, com certeza, irá colaborar com seu talento e simpatia para a continuidade da história do Galpão.

Analise já participou do programa diversas vezes, seja cantando com o grupo das Mulheres Pampeanas ou ao lado do seu parceiro de vida e de palco, o Jean Kirchoff, outro baita colega e ótimo cantor. Sei que a aproximação da data de estreia tem deixado a Analise preocupada, mas já me adiantei e disse para ela que estarei ali para acalmar e dar aquela força. 

Pois sei que o meu papel, neste momento, por estar há mais tempo na apresentação do programa, é apenas colaborar, dando aquelas dicas no início, pois sei que ali na frente ela estará tirando de letra esse novo momento de vida e de carreira. Quando somos chamados, para qualquer coisa que envolva uma responsabilidade, dá aquele frio na barriga, mas também nos entrega uma grande porcentagem de prazer, de fazer bem feito aquele papel que nos foi destinado.

Seja muito bem-vinda Analise Severo, confiamos muito em ti, o palco é o teu lugar, que as luzes do Galpão Crioulo te iluminem nesse novo momento e que possamos levar adiante, com fibra e com valentia, essa história de 37 anos que nunca saiu do ar. O Galpão Crioulo é a vitrine do gauchismo na televisão brasileira que oportuniza artistas de diferentes estilos, uns da música instrumental ou cantada, urbanos e rurais, da música latina do Uruguai ou da Argentina, do fandango e da poesia, da trova ou da Payada, a mostrarem seu trabalho. 

Espero que possamos iniciar o domingo juntos, acordar com alegria e música os gaúchos e as gaúchas de todas as querências. Está chegando a hora de recebermos de braços abertos a Analise Severo. Venha tranquila e com a certeza de que o nosso Galpão Crioulo, a partir do mês de maio, também estará de cara nova. Ah, mas fiquem tranquilos porque em outubro Shana estará de volta!

NETO FAGUNDES


27 DE ABRIL DE 2019
PAULO GERMANO

Por que não dá para desistir

Não conhecia aquele Michael. Há quase três anos, recebi dele uma mensagem no Facebook: Minha tia encontrou uma carteirade um Paulo Germano e, pelas fotos,é parecido contigo.

Ué. A carteira estava na minha pasta, ela raramente sai dali, então pobre desse outro Paulo Germano, que, além de ter perdido a carteira, ainda é parecido comigo, mas, mesmo assim, decidi abrir a pasta, não custava conferir, enfiei a mão lá no fundo, só senti a caneta e o bloquinho, depois meti o nariz lá dentro e cadê o diabo da carteira?

Perdi. Michael estava certo, devia ser minha mesmo. Estavam nela todos os meus documentos, cartões de crédito e de débito, notas fiscais e algum dinheiro. Ele pediu que eu informasse minha data de nascimento, para checá-la na identidade, mas ressaltou que a carteira, na verdade, estava com a tia dele. Michael só tinha as fotos dos documentos, que a tia lhe havia enviado por WhatsApp. Comecei a me impressionar com aquilo.

É que a tia de Michael, dona Rosangela, não tinha Facebook, então pediu ao sobrinho que encontrasse o moço da carteira. O problema é que meu nome completo, na identidade, é Paulo Germano Moreira Boa Nova, o que fez Michael procurar por Paulos Moreiras e Paulos Boas Novas e Paulos Novas e Paulos Germanos, até encontrar alguém mais parecido com o sujeito dos documentos.

Fiquei comovido. Agradeci pela honestidade, pelo tempo perdido com uma pessoa que nunca viram. "Era o mínimo que eu poderia ter feito", respondeu Michael, antes de me passar o telefone da tia. Com entusiasmo na voz, feliz por ter me achado, dona Rosangela já foi contando:

- Faço faxina ali na Bordini e, quando eu saía do trabalho, antes de pegar o ônibus no Parcão, chutei um troço preto na calçada.

Pela descrição, foi em frente ao prédio da minha mãe. Decerto a carteira caiu quando eu descia do Uber. - Fiquei com uma pena... Vi aquele monte de documento ali, e o senhor ia ter que fazer tudo de novo.

- Nem me fala, dona Rosangela, seria uma incomodação.

- Sim, eu sei. Fui assaltada esses dias e fiquei tão triste, seu Paulo. Roubaram a carteira e o meu celular, duas vezes.

- Mas como duas vezes?

- Roubaram na parada. Comprei um celular novo na sexta e, na segunda, já me levaram ele também. Aliás, quero dizer que os R$ 60 do senhor continuam aqui, viu? Tá tudinho na carteira.

Fiquei pensando, meio culpado. Dona Rosangela faz faxinas, frequenta o Moinhos a trabalho, volta para casa de ônibus, não deve ter muito dinheiro e é assaltada duas vezes em poucos dias. Já eu visito minha mãe no Moinhos, volto para casa de Uber, não sou pobre e, quando perco meu dinheiro, dona Rosangela me devolve. No dia seguinte, ao buscar minha carteira com ela, na casa de uma família no Bom Fim, pedi que agradecesse outra vez a Michael.

- Ele ficou tão feliz que pôde ajudar. Porque o Michael anda preocupado, perdeu o emprego faz um mês e agora só pensa em arranjar trabalho - contou ela antes de eu me despedir.

Na quinta-feira passada, resolvi ligar para dona Rosangela. Descobri que Michael, hoje, é cobrador. Perguntei como foram os últimos anos, e ela disse que tudo bem, embora tenha vivido alguns imprevistos:

- Lembra daquele temporal horrível? Aquele que destruiu a cidade. Perdi tudo, seu Paulo, tudo - ela suspirou, para depois dizer que recuperou cada coisinha trabalhando duro, mas que, no ano passado, arrombaram sua casa e tudo foi embora de novo.

Dona Rosangela, como sempre, foi reconquistando o que precisava. E eu fiz questão de lhe agradecer outra vez - agora não pela carteira, mas porque nunca, nem ela, nem Michael, aceitaram desistir.

PAULO GERMANO

Paixão, tiros e malas

Boris Fausto fez um livro memorável: O Crime da Galeria de Cristal e os Dois Crimes da Mala São Paulo 1908-1928 (Cia das Letras, 2019). Fruto de uma pesquisa nos arquivos do Judiciário e de leitura de vários jornais da época, o livro já encontrou boa acolhida do público leitor com justas razões. Vejamos algumas.

Um jovem advogado, Arthur Malheiros, é atraído para um quarto de hotel por um potencial cliente. Lá encontra uma ex-namorada, desonrada por uma gravidez que ele não assumiu. Ao perceber a armadilha, era tarde. Levou dois tiros. Albertina Barbosa, a da honra maculada, ainda tentou cortar a cabeça do advogado. Tudo com auxílio do seu atual marido e que tinha atraído a vítima ao desfecho no hotel Bella Vista. Querem um fato notável? Muita gente ficara ao lado da assassina. A questão da honra tinha se tornado um debate importante e faz emergir os valores da época.

O crime empolga a imprensa como um folhetim real. Escritoras renomadas assumem posições distintas sobre Albertina. Os advogados a apresentam como uma mulher ultrajada, mas a acusação também constrói a personagem moralmente indefensável, com hábitos estranhos e mãe que abandonara o filho do infeliz bacharel na roda dos expostos. O leitor acompanha o dia a dia do julgamento, a exposição dos juristas e os dados que surgem na imprensa. É um folhetim complexo, a tal ponto que omito o final dos processos para não quebrar o suspense.

Além do crime da Galeria de Cristal que mesmerizou o público paulistano que transitava da modorra provinciana para os anseios cosmopolitas, o livro contém duas histórias com o mesmo destino lúgubre das vítimas: serem acomodadas dentro de uma mala. Os dois foram muito diferentes, todavia despertaram na São Paulo da ocasião paixões similares ao "affaire Dreyfus" que dividira a França anos antes. Imaginamos que, anos antes da nossa polarização política atual, os jantares paulistanos estavam divididos entre quem reeditava ou não, na versão de Michel Trad, o assassino do celebérrimo crime da mala.

Outra razão de o livro ser tão bom: a linguagem é clara, direta, bem elaborada e consegue prender o leitor como se ele acompanhasse o caso dia a dia. Somos levados à cidade de São Paulo na República Velha e vamos acompanhando os desdobramentos, as charges, a reação do público, a posição da imprensa e os julgamentos eletrizantes. Funciona como uma narrativa bem construída e com o domínio retórico para prender a atenção do leitor. Isso confirma Boris como um grande escritor.

Os dados são bem pesquisados e ordenados e, como é imperativo para um profissional de humanas, existem ampliações sociológicas para entender o universo no qual tudo isso está inserido. Assim, a geografia de São Paulo, o crescimento populacional extraordinário, a situação da mulher na cidade, a imigração massiva, como era o carnaval, a imprensa popular, o consumo de jornais, a legislação vigente e os valores do século passado emergem com clareza e inserem os fatos diversos (faits divers, na expressão teórica) como os crimes em uma perspectiva muito bem realizada. Isso confirma Boris como excelente historiador.

Existe um equilíbrio entre o individual e irrepetível com o amplo e sociológico. É incrível como algumas questões do século 21 aparecem em casos antigos, como o debate sobre o show midiático e sua influência sobre o andamento do processo. As penas seriam duras ou leves demais? A vida na prisão era uma masmorra ou era um hotel de luxo? O mundo estaria piorando porque as punições não desestimulavam a delinquência? Em 1908, 1909 e 1928, havia muita gente reclamando que a segurança piorava dia a dia e era culpa do governo do momento. Com anexos jurídicos e sínteses sobre as etapas do processo, vamos acompanhando o debate ao longo do livro.

Fazer um escrito histórico para grande público é um desafio. Se Boris Fausto nada disser da teoria de Roland Barthes ou de Marlyse Meyer sobre os "fatos diversos", será acusado de factual, narrativo e de ter cedido ao gosto do populacho pelo anedótico. Se insistir na estruturação de como um crime se insere na ordem social a partir de uma explicação teórica mais ampla, será acusado de academicismo, linguagem pernóstica ou de "escritor confuso". Pior de todos os crimes: simplesmente não venderá nenhum exemplar. Bem, a vitalidade da escrita, o rigor da pesquisa e o sabor da narrativa encontraram, no livro de Boris Fausto, um equilíbrio muito bom. A carreira do professor da USP já é exemplar e consolidada e não necessita de elogios e sobreviveria a ataques. 

O mais interessante ao fechar o livro é perceber que alguém que não decai o nível da narrativa continua intenso e contribuindo tanto para o conhecimento como para o prazer de ler uma excelente obra como O Crime da Galeria de Cristal. Há o duplo prazer de leitor comum que acompanha um texto muito bem feito e o de especialista em história que destrinça os fatos e suas costuras sociais. Casos individuais de uma São Paulo que já não existe, todavia, iluminam a que existe e que ainda se vê imersa em crimes e passionalidades. É preciso ter esperança.
LEANDRO KARNAL