03 DE DEZEMBRO DE 2022
LEANDRO KARNAL
Ana viu o vídeo várias vezes. Observou detalhes com a atenção que seu treinamento de psicóloga pedia. Shirley estava sentada em uma cadeira de plástico. Agitava-se com força. O pastor a segurava e outros membros da igreja reforçavam os gestos e as falas do dirigente. Havia gritos de Fora, Satanás! e Saia em nome de Jesus!.
Após um tempo longo, Shirley se acalmou e, finamente, abriu os olhos. O oficiante anunciou que ela estava livre do inimigo. Eram ouvidos coros de "aleluia" e de "amém". O exorcismo estava terminado.
Religião era a área de pesquisa de Ana. Ela tentava não julgar seu objeto. Buscava os melhores conceitos freudianos e lacanianos para lidar com a situação que acompanhava. Estava escrevendo sobre possessões. "Julgar atrapalha a análise e mostra apenas você, não o paciente" - ela aprendera o princípio em Antropologia Religiosa, durante um curso na Universidade de São Paulo (USP).
Havia uma luta interna. A pesquisadora não acreditava em entidades metafísicas divinas ou infernais. Ao mesmo tempo, sentia que a tradição psicanalítica era dura com a fé religiosa e bastante permissiva com crenças irracionais dos próprios psicanalistas. Sorriu ao pensar em tantos colegas de trabalho para os quais uma boa sessão de exorcismo teria, pelo menos, o efeito de serem tocados por muitas mãos. Crítica, Ana pensava no seu lugar de fala (urbano, branco, acadêmico) e em seu olhar sobre a pessoa naquela cadeira de plástico. Tentaria entrar na gramática da possuída mais do que na de um teórico austríaco ou francês.
Havia uma questão narcísica, claro. Shirley, a ex-endemoniada, tinha sido libertada de uma entidade que, afinal de contas, tentara gente ilustre como Adão, Eva e, acima de tudo, Jesus. Ter Satanás no seu corpo era um upgrade imenso. Ela era alguém em uma disputa cósmica. Impossível não notar os efeitos hipnóticos da Bíblia que o pastor agitava em movimento pendular. Os gritos da comunidade funcionavam de forma tribal para derrubar uma barreira de racionalidade ou de intimidade. Shirley era o prêmio que dois grupos disputavam com força: o team Jesus e o team capeta. Tudo ali a elevava. O poder das mãos sobre o corpo dela tinha até certo caráter sexual.
Ana tomava notas para preparar o artigo sobre aquele exorcismo. Esbarrou na ideia de sentimento oceânico: o termo de Romain Roland incorporado por Freud. Era a sensação de eternidade no instante, o mundo sem limites perceptíveis. Ali estava o prazer absoluto do bebê ou da memória de um ego primitivo e forte.
Naquele instante, a renomada pesquisadora percebeu que sentia tristeza pela intensidade da entrega de Shirley. Era uma inveja sofisticada que envolvia o sentimento oceânico, porém, era inveja. Sem julgamentos, empoderada, Shirley reinava na situação cercada de atenções da sua comunidade em um jogo que envolvia o Céu e o Inferno. Mãos humanas e planos divinos cercavam-na em um mar de atenções, no líquido quente do protagonismo. Entregue a todos, a possuída flutuava, majestosa, com a certeza de que a fé lhe dava a vitória final. Shirley estava possuída de si (no sentido positivo do termo). O grupo ao seu redor lutava contra o sintoma secundário: um espírito imundo.
Ana invejou a entrega no silêncio da sua sala naquele fim de tarde. Sentada em uma sofisticada poltrona de design dinamarquês, a psicóloga invejou a cadeira de plástico da igreja. Ela, Ana, passava anos analisando pessoas lentamente, minuciosamente, criteriosamente. Ali, em 15 minutos, em um ritual teatralizado, as coisas tinham ocorrido diretamente.
Parece que o demônio tinha fugido do corpo vasto de Shirley e se alojado em Ana. Um espírito ardiloso tinha colocado a dúvida na profissional da mente. A psicóloga não tinha sido informada de que nunca se deve discutir com o Príncipe das Trevas: ele é mais astuto e tem mais argumentos. A vida dela pareceu racional e vazia. Ana experimentou uma profunda tristeza que contrastava com o entusiasmo de Shirley, ao final do vídeo. Lembrando-se de um conceito de Rudolf Otto, Shirley tinha entrado em estado "numinoso", a maré suave que invade o fiel diante do mysterium tremendum. Havia um vasto e direto mistério ali... Shirley tinha sido capaz de alcançá-lo. Ana, não.
Perturbada, a psicóloga saiu do consultório para buscar seu supervisor. Queria compartilhar com outro intelectual sua inquietação, talvez seu medo. Seria o caso de um remédio, talvez? Ana não conseguiu distinguir se estava possuída de algo novo ou se, finalmente, tinha sido abandonada pelo espírito seco e insistente da racionalidade. O corpo, sempre o corpo, tomou sua própria decisão. Ela evitou os Jardins e dirigiu-se à Radial Leste, em São Paulo. Deu as costas ao endereço do seu supervisor-doutor e foi direto para uma pequena igreja com cadeiras de plástico. Lá, diante do pastor que ela reconheceu pelo vídeo, pediu, entre lágrimas, que ele a exorcizasse. O homem, gentil, atendeu ao desejo dela.
Depois de meia hora, ela se sentia diferente. O que tinha ocorrido? No céu dos psicanalistas, Lacan e Freud sorriam. Ana estava em paz no vasto oceano de uma nova vida. Agora, ela tinha esperança.
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