quinta-feira, 23 de abril de 2020



23 DE ABRIL DE 2020
DAVID COIMBRA

O grande ensinamento da peste

Estava tudo certo na minha vida. Uma ou duas vezes por semana eu tomava uns chopes cremosos, dourados e gelados com os amigos, noutros dias via um futebol ameno na TV, e lia meus livros, e escrevia minhas crônicas, e jogava um xadrezinho online, e curtia a família, tudo certo.

Aí um chinês resolveu comer morcego lá na China. Agora fico pensando: será que esse chinês sabe a confusão que ele causou? Onde é que ele está, esse chinês? O que é feito dele? Dizem que morreu. Duvido. Deve estar tranquilo, na China, comendo morcego. Será que ele sabe a confusão que provocou?

Já cometi muita besteira na vida, você também, decerto que sim, mas pense no tamanho da besteira desse chinês. Imagine os amigos dele, neste momento:

- Cara, olha o que tu fez! E a mulher dele. Imagine a mulher dele! O que ela deve estar dizendo para esse chinês comedor de morcego neste exato instante! - Eu te disse pra tu optar por yakissoba, mas tu nunca me ouve!

Isso é que é realmente espantoso: o almoço de um chinês em Wuhan influenciou os meus chopes cremosos, dourados e gelados em Porto Alegre, a 18.627 quilômetros de distância. É o tal Efeito Borboleta, de que tanto se falava tempos atrás: o bater das asas de uma borboleta pode transformar-se em um tufão do outro lado do mundo.

Foi o que aconteceu quando aquele cara decidiu comer morcego num imundo mercado de um canto do Oriente longínquo. A borboleta bateu suas asas e os ventos da peste devastaram a Terra. Uma única refeição mudou a vida dos povos.

Essa constatação tem um significado profundo: tudo o que é feito ou sofrido por um ser humano, em qualquer parte do planeta, importa. Assim, um mercado que vende animais sem boas condições sanitárias na China é importante para empresários e trabalhadores europeus, americanos e africanos, e também favelas sem tratamento de esgoto nos subúrbios do Brasil, e crianças que passam fome na Etiópia, e refugiados da Guatemala, e desempregados da Venezuela.

A riqueza, o progresso e a fartura de uns dependem da situação de vida de todos. Se os quase 8 bilhões de seres humanos que respiram debaixo do sol não podem compartilhar a mesma riqueza, o mesmo progresso e a mesma fartura, que pelo menos compartilhem dignidade.

Esse é o grande ensinamento da peste.

Sei bem que nunca teremos, todos, mansões, carrões e milhões, mas poderíamos, todos, ter vidas decentes, com saúde, educação, moradia e segurança universais. E, é claro, uns chopes cremosos, dourados e gelados de vez em quando.

DAVID COIMBRA

Nenhum comentário: