28 DE ABRIL DE 2020
CARLOS GERBASE
O censor e a pelada
É uma questão clássica sobre um paradoxo: a liberdade de expressão deve ser tolerada mesmo quando pede o fim da liberdade de expressão? Sem formação em Direito, muito menos em Filosofia, responderei de modo bem simples - há argumentos que preencheriam esta edição inteira de Zero Hora - a partir de fatos concretos que vivi nos tempos do arbítrio e da censura. Minha resposta é simples: não. Nunca. Não pode haver liberdade para quem clama o fim da liberdade. Eu estive, várias vezes, numa delegacia da Avenida Presidente Roosevelt mostrando filmes super-8 para um censor, que os assistia com evidente mau humor. Numa dessas constrangedoras sessões, exigiu um corte de um minuto, porque "o membro do personagem aparecia."
A Constituição de 1988 terminou com a carreira desse sujeito, ou melhor, sejamos otimistas, permitiu que ele usasse seu tempo - pago pelos contribuintes - em uma função mais útil para a sociedade. Esse senhor, quem sabe saudoso daqueles tempos de arbítrio (o seu mau humor seria um habilidoso disfarce para pensamentos libidinosos inconfessáveis), talvez esteja agora acompanhando, mesmo aposentado, as hordas de descerebrados que pedem coisas como intervenção militar ou promulgação de um novo AI-5. Até posso vê-lo, ali perto do QG da Rua da Praia, domingo à tarde, talvez apoiado numa bengala, salivando tranquilamente, sem máscara, quem sabe enrolado numa bandeira do Brasil.
Eis que, para sua surpresa e dos demais patriotas de fim de semana, uma mulher aparece pelada na Igreja das Dores e, já que há liberdade de expressão, cobre seu rosto com uma máscara que estampa "Fora Bolsonaro." O censor, imerso num déjà-vu poderosíssimo, grita: "Deixa que eu corto!". Mas já é tarde. Dois manifestantes, excitados demais para esperar um rito minimamente legal, preferem a violência, e os seus socos covardes não têm certificado expedido em três vias. O censor volta para casa cabisbaixo, pois seu inesperado momento de glória foi roubado.
Contudo, quando vai dormir, sonha com a pelada e imagina a sensação maravilhosa de mostrar para a turba como o Estado a cortaria sem qualquer processo legal referente a agressões físicas. O sonho do censor é o meu pesadelo. É o pesadelo da República, que não pode permitir a livre manifestação de malucos que querem o fim da República. Lembrem: o censor está velho, está dormindo, mas continua a ser exatamente o que era.
CARLOS GERBASE
Nenhum comentário:
Postar um comentário