25 DE ABRIL DE 2020
FRANCISCO MARSHALL
PRÓLOGO MÓRBIDO
O prólogo (primeira cena) da tragédia Édipo Tirano, de Sófocles, mostra uma cidade sendo consumida por peste devastadora. É Tebas gemendo, tomada pela fumaça das oferendas, onde o Velho Sacerdote de Zeus suplica ao soberano, Édipo, e descreve a crise: "Pois a cidade, tal como a vês, já/ muito sacode, e não consegue erguer/ a cabeça dos abismos do mar de sangue,/ perecendo nos casulos frutuosos da terra,/ perecendo nos rebanhos bovinos e nos partos/ estéreis das mulheres." (v. 22-27). Imagem assombrosa: mulheres grávidas dão à luz e nada geram.
No mundo representado nesta obra-prima, natureza e história estão conectados; é o cenário em que se analisa a relação entre a chaga que devora a cidade e o estado do poder na pátria em crise. Édipo é tragédia política por excelência, criada para comentar tramas como a que ora vivemos, enfrentando simultaneamente a morbidez da pandemia e a de um líder perturbado e nocivo, em uma nação gravemente enferma.
Quando Sófocles produziu seu primeiro Édipo, por volta de 425 a.C., Atenas ainda se erguia, combalida, de uma grande peste, ocorrida no segundo ano da Guerra do Peloponeso, em 430 a.C.. Os malefícios remanescentes da peste eram agravados por decisões desastrosas, promovidas por líderes que fingiam ter um saber que de fato não tinham e iludiam o povo. Todos pagavam por tais erros, e a pólis, outrora próspera, logo conheceria um golpe de Estado violentíssimo (em 411 a.C.) e, a seguir, a derrota definitiva (404 a.C.). Peste e crise política foram forças coadjuvantes do colapso de Atenas. Estamos ainda no prólogo de um drama que sabemos não ser comédia.
A pandemia do coronavírus é uma das forças mais letais já enfrentadas pela humanidade. Temos hoje ciência e riqueza suficientes para encarar esta esfinge, mas nos acossa, simultaneamente, o pior dos flagelos: a ignorância e seus frutos podres, o ódio, o egoísmo e a imprudência. De nada valerão os poderes da ciência e as reservas de riqueza nacionais e internacionais se não formos conduzidos pelos princípios que nos constituem como espécie: o saber e a solidariedade. Sem o primado do saber, ou guiados por saber falso, rompe-se o pacto da vida moderna, e triunfa tenebroso mundo de abutres cevados por crendices religiosas e pela insensatez de líderes ignorantes.
Quando a violência agressiva se volta contra a sociedade, a energia sanguínea e colérica, que pode ajudar a impelir avante e vencer guerras, torna-se fonte da morte. Já vivemos isso na longa história de uma nação escravocrata, acomodada na iniquidade, leniente com farsas, violenta e suicida. Ora esse passado assombra presente e futuro com a força de um totem capaz de magnetizar o poder da morte e fazer a ignorância e a peste ceifarem a nação: um presidente mórbido, tolerado por autoridades prevaricadoras.
No êxodo (epílogo) da tragédia de Sófocles, Édipo, evidenciado em sua ignorância e como causador dos males de Tebas, parte para o exílio, cegado e conduzido por sua prole. A nossa tragédia será atenuada quando nos livrarmos de nosso miasma, o inimigo da vida e da nação.
FRANCISCO MARSHALL
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