25 DE ABRIL DE 2020
INFORME ESPECIAL
E xingar, pode?
"Vá se ferrar". A frase encerrava um longo e contundente e-mail, que recebi durante a semana. Críticas e elogios são parte do trabalho de um jornalista. Mas esse xingamento me fez pensar, porque indica o limite do transbordo. Quem manda alguém "se ferrar" quer, na verdade, dizer outra coisa, que também começa com "f". Mas o verniz da civilidade, embora craquelado, ainda não se rompeu. Está por um triz.
A civilização começou, milhares de anos atrás, quando, pela primeira vez, na saída da caverna, um soco foi substituído por um xingamento. O pensamento, atribuído a Freud, indica um caminho que, hoje, está sendo percorrido novamente, mas na direção aposta. O impulso da violência é natural. A questão é o que fazemos com ele: um poema, um xingamento. Ou um pontapé.
O mundo da internet vem mudando a forma como pensamos. A afirmação é da neurocientista da Universidade de Oxford Susan Greenfield. Uma das áreas afetadas pelo fenômeno é a formação da identidade, que passa a depender muito mais da visão dos outros. A possibilidade de estar cercado apenas por quem pensa igual, oferecida pelas redes sociais, leva à sensação de que a bolha onde vivemos é o mundo. A reação estridente gera o aplauso mais rápido e barulhento dos que torcem para o mesmo time. E quem não torce, é adversário. Ou inimigo. A busca de legitimidade na tribo contribui para a radicalização dos discursos, que acabam transbordando para a vida lá fora.
Conversei durante a semana com Fernando Schüler, uma das boas cabeças desse país. Filósofo e professor, cita vários autores para embasar ideias. Uma delas: a internet é um ambiente de baixa empatia, porque exclui a percepção mais ampla do outro. Acrescente-se o imediatismo das reações, fenômeno que merece uma compreensão mais ampla.
Algumas décadas atrás, discordar de um texto dava trabalho. Levantar-se, pegar uma folha de papel, colocá-la na máquina de escrever, redigir, envelopar, ir até os Correios e despachar ao destinatário, do qual era preciso pesquisar o endereço. Era um processo bem mais complexo e que exigia tempo. Hoje, a resposta é por impulso e, muitas vezes, disparada no pico da irritação. Nem é preciso escrever. Bem-vindos a 1982.
Nesse ano, Scott Fahlman, professor da Universidade Carnegie Mellon, na Pensilvânia, Estados Unidos, apresentou uma ideia aos colegas. Nas suas comunicações internas, acrescentar o sinal : - ) quando o texto fosse uma piada e : - ( quando o assunto fosse sério. Era posto em prática, pela primeira vez, um conceito que revolucionaria a comunicação. Os emoticons são os avós dos emojis - junção das palavras japonesas "e" (imagem) e moji (letra). Criados em 1999 pelo engenheiro Shigetaka Kurita, os primeiros 176 símbolos se transformaram, hoje, em mais de 2 mil.
A reação emocional e instantânea possibilitada pela internet é uma das ferramentas essenciais de um novo sistema. O "capitalismo de vigilância" (surveillance capitalism) é um conceito elaborado pela professora de Harvard Shoshana Zuboff. Uma de suas definições: "Uma nova ordem econômica que considera a experiência humana matéria-prima gratuita para práticas comerciais veladas de extração, previsão e vendas". É o que fazem, por exemplo, Google e Facebook.
O verdadeiro negócio dessas gigantes não é dar, mas sim retirar informações de seus usuários, para poder, sem que eles saibam, mapeá-los e oferecer-lhes, de uma forma mais eficiente para o negócio, produtos e serviços. Para tanto, as palavras não bastam. É preciso armazenar e decifrar emoções. Por dia, mais de 5 bilhões de emojis são compartilhados, só no Facebook e no Messenger.
Nesse contexto, a possibilidade de expressão com carinhas de riso e de ódio, sinais de aprovação e desencanto, de impaciência ou de gargalhada, oferece a essas empresas um tesouro incalculável para que elas nos conheçam, muitas vezes, mais do que nós mesmos. É isso que dá a elas o valor que têm: a matéria-prima comportamental que nos extraem, de graça, cada vez que externamos em suas plataformas, de forma rápida sem filtro, uma preferência ou uma emoção.
De volta a 2020, novos e explosivos ingredientes se somam ao caldo da intolerância online. Muitos deles fermentados na quarentena imposta pelo coronavírus. O psicanalista gaúcho Abrão Slavutzky identifica um dos mais relevantes: a frustração. Planos de viagens e de festas, de encontros e de compras, de conquistas e de crescimento. Tudo interrompido por um inesperado e gigantesco limite. Os pais sabem que ensinar os filhos a lidar com a frustração é um dos maiores desafios do processo educacional. A reação ao "não" é uma das menos gratificantes, mas das mais necessárias. Choro, gritos e birra são um eterno teste para a paciência e para a perseverança. Aí vem a quarentena e nos impõe essa espécie de regressão coletiva, na qual nos vemos diante de um novo e instransponível "não" aos nossos projetos e sonhos imediatos, quadro agravado pela indefinição sobre o futuro. A raiva também é um subproduto desses tempos, que inspiram, por outro lado, solidariedade e gratidão.
O fato de estarmos em casa, protegidos, contribui para a sensação de segurança e impunidade digital. Não há sequer o risco, mesmo que apenas hipotético, de encontrar o "inimigo" no supermercado ou da fila do cinema. A bolha ganhou uma camada extra de revestimento, feita de tijolos sólidos e de portas trancadas. De longe, todo mundo é mais valente e, muitas vezes, pela falta de empatia, nega ao outro a condição mínima de humanidade. O problema é que, mais cedo ou mais tarde, haverá o encontro na rua, como aconteceu recentemente em Porto Alegre, quando agressões covardes foram flagradas por câmeras durante uma manifestação.
Durante a semana, troquei e-mails duros com um leitor que se apresentou de forma extremamente agressiva. Foram textos curtos e ásperos. Na medida em que a conversa avançava, percebi ali um ser humano angustiado e triste com suas perdas reais. E vice-versa, acredito. Mas o que me motivou a escrever esse texto foi a última troca de mensagens entre nós, 24 horas depois. Combinamos tomar um café quando a quarentena passar para, fraternalmente, trocarmos ideias que não precisam, necessariamente, convergir. Encerramos provisoriamente nosso diálogo concordando que o esforço para construir pontes vale a pena, mesmo que seja muito mais fácil - e rápido - destruí-las.
TULIO MILMAN
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