sábado, 7 de dezembro de 2019



07 DE DEZEMBRO DE 2019

COMPORTAMENTO

Negros contra negros: POR QUE?

Por trás da metralhadora giratória de Sergio Camargo, nomeado diretor da Fundação Palmares e depois impedido judicialmente de assumir o cargo, está uma fuga da própria negritude, defende pesquisador da cultura afro-brasileira

Há 99 anos, o jornalista carioca João do Rio (ou Paulo Barreto) atacava, pelos jornais, com muita virulência, os sacerdotes afro-brasileiros locais dos anos 1920. E dava seus endereços à polícia, à qual cobrava rigor. Em As Religiões do Rio (1951), escreve: "As yauô (filhas de santo) (...) são as demoníacas e as grandes farsistas da raça preta, as obsedadas e as delirantes". E ainda: "(...) das bocas cusparinhentas dos assistentes escorria a alucinação".

Oliveira Vianna (Populações Meridionais do Brasil, 1987), autor famoso, foi talvez o maior divulgador brasileiro da suposta superioridade da "raça" branca. Suas palavras também são incisivas e duras: "Mulatos e negros" são "bastardia formigante". Ou: "Os elementos brancos (...) acabam afundando nessa ralé absorvente" composta pelo "transbordo das senzalas, as récovas da escravaria (...) mulatos alforriados". "O mestiço, depois de várias gerações, pode perder os seus sangues bárbaros - e clarifica-se".

O jornalista que chegou a ser nomeado diretor da Fundação Palmares, Sergio Camargo, porém, usa é uma metralhadora verbal com ofensas pesadas contra artistas negros do porte de Gilberto Gil, Martinho da Vila, Taís Araújo, Leci Brandão, além de deputados federais como David Miranda e Talíria Petrone, ambos do PSOL-RJ. E dispara declarações como: "Não há racismo no Brasil"; "A escravidão foi boa para os negros, porque estão em situação melhor do que na África"; tem "vergonha e asco pela negrada militante" e que Marielle "não era negra, mas mau exemplo para os negros em geral". Expressões como "parasitas da raça negra no Brasil", "negro babaca", "vagabundo" também compõem o tiroteio.

Camargo e os dois escritores citados têm um ponto em comum: são afrodescendentes. Mas, mais do que os outros, a pele do diretor da Fundação Palmares é retinta.

Antropólogo, desde muito tempo venho pesquisando sobre o batuque, uma religião afro-brasileira característica do Rio Grande do Sul, a cultura popular afro-brasileira em geral e relações raciais, além de convivências com movimentos negros. Ao abordar tais universos, percebi que meus estudos só teriam melhores resultados se considerasse as influências do racismo sobre as atitudes e o pensamento dos integrantes dessas manifestações. E, então, busquei também tal meta.



Fugindo da "cor"


As imagens dos dois autores citados, na internet e em suas próprias obras, e a de Sergio Camargo, na imprensa, permitem uma interpretação freudiana do ato de atacar os negros: tanto João do Rio como Oliveira Vianna, apesar da pele mais clara e feições do rosto menos evidentes, carregam a negritude. Sergio Camargo mais ainda. Ao acusar os negros, os três constroem um muro divisório entre ambos: os negros estão lá e não aqui, apontam. A atitude refletiria uma tentativa de fuga, procurar se livrar dos acachapantes estigmas que a sociedade branca lhes impôs.

A fúria é reforço ao que se diz. Tornar verdadeira a verdade que está sendo dita. Mas para os outros ou para quem diz?

A última frase de Vianna é significativa: ao falar sobre a diminuição progressiva dos "sangues bárbaros", ele está é se olhando e elogiando física e psicologicamente no espelho, feliz pela perda. Mas não se dá conta de que o simples fato de dizer isso e olhar para si mesmo é admitir, queira ou não, que a herança genética que odeia nele mesmo (e por isso critica o outro), está ali, pulsando firme em suas artérias.

Em última análise, os três, como boa parte dos negros, não conseguiram resistir ao peso do preconceito e o introjetaram. Para tentar se livrar dele, apontam a pele alheia. Mas o caso do presidente da Fundação Palmares parece ser pior, porque seu indiscutível teor de melanina deve tornar um suplício se olhar diariamente no espelho. Daí a metralhadora. Talvez, pelo mesmo motivo - fuga - raspe a cabeça, porque sabe que seu cabelo escancara sua negritude.

A questão do racismo é gravíssima, no Brasil, porque é estrutural, se faz presente e com força em mentes, além de todas as instâncias da sociedade brasileira. Mas não se diga que apenas os negros são prejudicados, porque ele inibe e corta talentos e iniciativas de quase 55% da população. E, ultimamente, causa as estúpidas e ilegais mortes, pela polícia, de centenas de jovens negros. É, pois, a própria sociedade, como um todo, que é vítima do racismo.

NORTON F. CORRÊA

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