segunda-feira, 5 de agosto de 2019


05 DE AGOSTO DE 2019
CLÁUDIA LAITANO

O rei desvairado


"Considerar proveitoso o mal é próprio daquele cuja mente um deus conduz ao desvario: breve tempo viverá alheio ao desacerto."

O soberano desvairado a que o texto se refere não é aquele em que você está pensando, mas o rei de Tebas, Creonte, personagem de Antígona, uma das maiores (se não a maior) de todas as tragédias gregas (a tradução que uso aqui é a da coleção pocket da L&PM, assinada pelo mestre Donaldo Schüler). Com Andrea Beltrão no papel principal e ingressos já esgotados, a tragédia de Sófocles será apresentada amanhã no Teatro da PUCRS. Antígona trata da sempre renovada oposição entre as razões (ou desrazões) do Estado e o indivíduo. 

Filha de Édipo e irmã de Polinice, Antígona luta pelo direito de enterrar o irmão. Creonte considera Polinice um traidor e decide que seu corpo ficará insepulto. Quem ousar desobedecer suas ordens, decreta, há de ter o mesmo destino. Inebriado pelo poder, Creonte não ouve os conselhos de ninguém, nem mesmo os do sábio Tirésias, que alerta para a desumanidade insensata e desnecessária de sua decisão: "A arrogância atrai a loucura. Detém-te ante o morto. Não queira matar quem já morreu. Que bravura há em exterminar um cadáver?".

Elzita Santa Cruz, avó do atual presidente da OAB, foi tão corajosa e incansável quanto Antígona. Lutou até o fim pelo direito de enterrar o filho, Fernando, militante político desaparecido durante a ditadura militar. Em novembro de 1974, escreveu um apelo ao presidente Geisel: "Esta carta é um grito de desespero de uma mãe que há oito meses chora a perda de um filho e espera em vão uma solução para o seu amargo problema".

Dona Elzita morreu em junho, aos 105 anos. Nunca recebeu a resposta que esperava, mas pelo menos foi poupada do espetáculo de desumanidade estrelado pelo presidente da República há alguns dias. Como Creonte, o presidente tentou "matar quem já morreu".

As chances de Bolsonaro aproximar-se voluntariamente de um livro ou de uma sala de teatro me parecem remotas, então imagino que ele não fique chateado com o spoiler: Creonte, o rei que não soube respeitar a dor de uma família e preferiu ignorar a voz de todos os que o chamavam à razão, termina sucumbindo aos próprios erros.

Breve tempo viveu alheio ao desacerto.

CLÁUDIA LAITANO

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